Momentos Mágicos - 24 de Outubro de 2018

não existe alienação, existe o jogo


Hoje a chuva está caindo sem parar.

É interessante a chuva, quando estamos a observá-la dentro de algum lugar protegido, como dentro de casa ou de um automóvel.

Nos traz uma sensação de aconchego.

Visitei uma senhora que vive com uma filha, com 31 anos de idade, especial e totalmente dependente.

Essa senhora foi o assunto que me envolveu e à assistente social que comigo estava em campo.

Foi-nos trazida a situação desesperadora pela assistência social do município. Entretanto, soubemos que ela está agora com um companheiro. O casal nos recebeu e essa senhora estampava um sorriso irradiante. Em visita há algum tempo, ela chegou a expulsar as assistentes sociais.

Além do novo companheiro, ela mudou-se para uma casa melhor. 

O ponto que nos chamou à atenção foi a forma como muitas famílias se comportam diante dos servidores públicos da assistência social. 

Muitas dessas famílias procuram ajuda e tecem um cenário desesperador, mobilizando muitas pessoas e alcançando doações. Algumas delas mantém esse discurso, mesmo quando encontram-se em uma situação melhor.

Numa avaliação rasa, dessas que muita gente adota pelo fato de não exigir o exercício do pensar e conhecer, pode parecer que criam mecanismos para que se mantenham alvo de doações, enquanto escondem suas reais situações e necessidades.

Com as redes sociais isso fica mais visível: uma família nos diz estar precisando de cesta básica, mas, publica no facebook fotos de situações as quais denunciam que tinham recursos para bancar.

Entretanto, as coisas são mais complicadas.

Em Campinas, São Paulo, tive a experiência de trabalhar muito próximo a comunidades grandes. Vi pessoas chegando nessas comunidades com a intenção de ajudar. Porém, desconhecendo as famílias, traziam preconceitos e criavam situações que, pensando estarem ajudando, ocorria de estarem sendo inconvenientes. Às vezes criavam constrangimento.

Percebia também que a reação das famílias da comunidade era de colaboração com esse "teatro". 

Creio que a manipulação era dos dois lados: alguém se vendo numa condição financeira privilegiada, fantasiando que sua presença numa comunidade pobre traria felicidade para essas pessoas, consideradas erroneamente como "inferiores", e seriam reconhecidas pelas suas obras de caridade.

Do outro lado, famílias participando dessa encenação para obterem recursos.

Depois de tanto tempo trabalhando com famílias empobrecidas, tenho hoje a percepção que não elas não existem. Não da forma como cremos, esteriotipada. Existem famílias, cada qual com sua história, por coincidência do destino, morando próximas. 

Comecei meu trabalho social pensando poder levar às comunidades pobres benefícios, no alto de minha arrogância infantil, como se fosse eu alguém com maior capacidade e conhecimento.

Hoje sei que mais aprendi do que ensinei, que não as conheço de fato e que, muitos que pensam estar manipulando comunidades, estão, de fato, sendo manipulados por elas.

Tudo é um jogo, como dizia minha orientadora do curso de mestrado, a Dra. Ilanil Coelho: não existe alienação. Existem escolhas - tudo não passa de um jogo.

Evidente que eu não quero dizer aqui que não existam pessoas com situações de extrema necessidade: eu mesmo conheço muitas assim. Apenas quero deixar meu depoimento de que, para ser efetiva, a ajuda deve ser verdadeira, a pessoa que a promove, não deve julgar e nem esperar algo em troca e muito menos pensar que "irá para o céu" por conta disso.

Meu momento mágico de hoje foi conhecer essa senhora, perceber que lutou e alcançou uma situação um pouco melhor, o que a transformou numa pessoa mais feliz e que, apesar de continuar pedindo, está talvez nesse jogo por viver com uma cruz enorme, uma filha que vive como um bebê de 31 anos.

É bom entrar nesse jogo, mesmo estando consciente disso.

Fonte: https://www.iped.com.br/materias/educacao-e-pedagogia/beneficios-didaticos-jogo-xadrez.html

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