Rede Comunidade - Pés no barro, cabeça nas estrelas - a história em fragmentos.


A vida sempre me trouxe experiências interessantes que, se romanceadas, certamente se tornariam livros ou filmes, quem sabe até novelas muito interessantes. Mas sou apenas um espectador.
Vejo os fatos se desenrolarem à minha frente, observo, me emociono.
Mas não relato - deixo-os em minha memória.
Agora sinto que se achega o momento em que essas memórias podem se perder: é hora de começar a contar.

Quando jovem, acreditava que o mundo se transformaria no ano 2000.
Fazia planos sobre viagens de férias em outros planetas, em carros voadores e em uma vida mais longa e sem doenças.
A tecnologia ia resolver todos os problemas, nos levaria a um mundo novo e fascinante.

Entretanto, estava eu no ano 2000 diante de um projeto que eu havia desenvolvido e com a missão de implantá-lo.
Nascia o Programa Rede Comunidade.
Eu e minha criação diante da crua realidade de um ano 2000 caótico para muitos.

Meu trabalho no ano 2000 é iniciar o contato com comunidades pobres de Campinas, oferecendo o fim do consumo irregular de energia em troca de doação de padrões ("postinhos") e outras vantagens.

Apesar de parecer uma missão impossível, pois as famílias tinham energia advinda de ligações clandestinas, os conhecidos "gatos" de luz, descobri desde o primeiro contato com a comunidade Vila Vitória, que a chegada da luz regular era desejada.

A energia clandestina era de péssima qualidade, insegura e não era gratuita: era preciso pagar a alguém para fazer as ligações e manter quando algo ocorresse na "rede".

Além disso, a chegada da luz regular podia ser vista como uma esperança na possibilidade de tornarem-se proprietários dos terrenos onde construíram seus barracos.

Nasci em S. Paulo, e meus primeiros anos de vida se deram num apartamento onde usava a sacada para brincar, o meu quintal improvisado.

Minha família, com bons e maus momentos financeiros, podia ser classificada como "de classe média".

Em 25 de setembro de 1998 a Revista CIER - Comissión de Integración Eléctrica Regional trazia um artigo sobre um projeto bem sucedido de erradicação do consumo clandestino de eletricidade, levado a cabo pela empresa argentina Edenor. Essa revista circulava para leitura dos colegas da CPFL e eu tive a curiosidade de ler, mesmo o texto estando escrita em espanhol. Fiz um resumo da matéria e encaminhei para minha gerência, para que estudássemos uma forma de realizar uma ação semelhante na CPFL. Nascia a ideia que se tornou a Rede Comunidade.

Revolvendo meu baú, encontrei esse resumo, assim como uma matéria de nossa primeira ação em campo.




Nunca havia tido a oportunidade de conhecer um bairro pobre.

Procurei pessoas como Haydée Monteiro e Silvana Spécie, que me ajudaram a entender como entrar nessas comunidades.

Em Vila Vitória eu comecei contratando 16 pessoas, moradores do bairro, como "agentes comunitários".







Andava com eles em campo, visitando todas as famílias, porta a porta, explicando o que iria acontecer e cadastrando-as para que recebessem o "postinho".






No início eu estava embriagado pelo conceito de que estava fazendo o bem para aquelas pessoas: hoje considero isso uma arrogância que contamina quem se aproxima dessas comunidades - arrogância em pensar que somos melhores e que seremos os salvadores dessas pessoas infelizes e desorientadas.

Nem infelizes, nem desorientados, são pessoas que não podem ser esteriotipadas.

Assim como todo e qualquer bairro, são vizinhos: católicos, evangélicos, prostitutas e estudantes.

Uma cidade.



Mas o primeiro choque com a realidade veio rapidamente: ao chegar numa residência encontrei um menino, aparentando uns 5 anos de idade.
Ele estava agachado, de cócoras à porta da casa, defecando fezes moles, quase líquidas a escorrerem pelo chão.
Bati palmas e um homem, que julguei ser seu pai, "pulou" o menino, me atendeu e depois "pulou' de volta para dentro de sua casa.
O menino permaneceu naquela condição.
Fui embora consciente de que nada sabia sobre comunidades e que as necessidades de algumas famílias superavam em muito minha capacidade de compreensão e, muito menos, de solução.

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2002 - Jardim Monte Cristo e Parque Oziel, Campinas

As pessoas que eu contratei para esse projeto, eram moradores dos bairros onde atuava.
Certa vez, ao comunicar a uma funcionária moradora do bairro Vida Nova, que iríamos começar o trabalho no Parque Oziel e Jardim Monte Cristo, deparei com um olhar assustado.
Percebi que ela temia entrar naqueles bairros, pois eram tidos como perigosos.
Mas o bairro Vida Nova não era menos perigoso.
Anos atrás havia ocorrido um massacre na porta da escola: por razões que só o tráfico de drogas pode construir, adolescentes foram executados quando saíam das aulas num final de tarde.
Mas a funcionária, apesar de morar naquele bairro, temia ir comigo aos bairros que considerava perigosos.
Eu a tranqulizei: expliquei que estaria com a equipe e que pessoas da associação de moradores estariam também conosco, nos apoiando.

Chegou o dia de iniciarmos os trabalhos e decidi começar pelo Jardim Monte Cristo.
Ela veio.
No dia anterior havia chovido e as ruas, sem pavimento, estavam com uma lama vermelha e brilhante.
Ela veio de branco.
Mas não apenas a blusa era branca- a calça e o tenis: tudo branco.
Como se pode prever, logo na primeira rua, uma escorregão e....
Sua roupa, antes branca, agora estava vermelha.
Não havia como continuar, pois além da lama, a roupa se molhou.
Antes que pudéssemos pensar numa saída, uma senhora, uma senhorinha, daquelas que usam vestidos longos e lenço cobrindo os cabelos, denunciando silenciosamente a sua religiosidade, saiu de um barraco e puxou a funcionária minha para dentro.
Ela voutou com roupas limpas.
A senhorinha lhe deu as roupas de sua filha e prometeu esperar por ela no final do dia, para lhe entregar as roupas sujas.
Espantosamente, no final do dia ela estava a esperar a funcionária.
As roupas lavadas e passadas.
Eu disse à funcionária perplexa: se você estivesse num bairro melhor ou no centro da cidade, certamente seria motivo de risos, isso se alguém não filmasse e enviasse as cenas para a "Pegadinha do Faustão".




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Um dia eu caminhava pelo bairro Jardim Monte Cristo acompanhado de um agente comunitário que também era um membro da associação de moradores.
"Marcão", como era conhecido, talvez pelo seu porte "gordinho", gostava de conversar enquanto andávamos debaixo de um sol impiedoso.
Aconteceu de passarmos defronte a sua casa no bairro e então ele me convidou para tomar um goel d'água.
Chamou sua mulher, que logo trouxe um copo para cada um de nós.
Insatisfeito, pediu à mulher que lhe trouxesse café para nós dois.
Na época eu acreditava que devia aceitar tudo o que me oferecessem, para demonstrar boa vontade e humildade - hoje penso diferente, creio mais na espontaneidade.
Ficamos conversando por um tempo incalculável mas o café não chegava.
Depois de muito esperar, a mulher nos trouxe duas canecas com um "chafé".
Marcão brincou com a situação: "esse é um café galopante".
Não entendi e deixei essa interrogação em minha face, ao que ele então completou: "poco-pó, poco-pó, poco-pó..."
Rimos da piada.
Voltamos ao trabalho após o café.
Eu segui com o gosto ruim daquela água tingida e com a certeza de que aquela mulher não tinha pó para o café, mas sentiu-se envergonhada com a situação e nos serviu, sabe-se lá de que jeito, aquele chafé.
Ainda penso às vezes em como deve ter sido angustiante para aquela mulher os minutos em que ficou a pensar numa saída para aquela situação, para ela desconcertante.

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Os dias eram difíceis nos bairros Parque Oziel e Jardim Monte Cristo.
Não por motivos deduzíveis, como o risco, a falta de estrutura, mas pelo excesso de trabalho e o calor intenso.
Um dia entretanto ocorreu um fenômeno mágico, ao menos para mim, que nunca havia presenciado antes.
Eram umas 5 horas da tarde e o sol estava encoberto por nuvens, após um dia tórrido.
Uma brisa soprou no Jardim Monte Cristo e, juntando o fato da repentina semi escuridão causada pelas nuvens que obscureciam o sol, criou um cenário que parecia prenunciar algum acontecimento sobrenatural.
E o que ocorreu em seguida foi, como já disse, mágico.
Uma nuvem de insetos, "aleluias", para mim apenas formigas com asas, encheu a rua defronte a associação de moradores.
Atrás delas vinham crianças com potes, canecas e coadores, tentando pegar tantas quantas conseguissem.
Lembrei-me da cena do filme "Edward Mãos de Tesoura", quando a amada de Jhonny Deep dança na neve criada pelos fragmentos de gelo advindos da ecultura que ele fazia em seu castelo.
Os insetos voavam sobre o bairro com as crianças atrás, como se fosse uma festa.
Senti essa sensação e me emocionei em silêncio. Era como se, no meio do caos, Deus se mostrasse presente, enviando uma mensagem de paz e alegria.
Alegria que somente os corações infantis puderam captar.

Os insetos na verdade eram perseguidos pelas crianças para se tornarem uma iguaria: uma vez capturados, tinham suas "bundinhas" separadas num pote.
Elas seriam cozidas e servidas com açucar e canela, formando uma farofa doce.
E, acreditem ou não, de bom sabor.

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Roni era um menino de uns cinco anos e morador do Parque Oziel.
Vivia nas ruas do bairro e me seguia vez por outra, me pedindo "um real".
Ele não correspondia a nenhuma descrição plausível de um menino de favela: era loiro e de olhos claros.
Por muito tempo eu tive a oportunidade de conviver com ele nas ruas e desenvolvi um carinho especial por aquele menino que, mesmo diante da rudeza do ambiente em que vivia, conseguia me passar um carinho angelical.
A família dele era totalmente desestruturada.
Sua irmã era uma das traficantes do bairro.
Certo dia um carro de polícia andava pelo bairro vagarosamente, os policiais com a cabeça e parte do corpo pra fora olhando de maneira ameaçadora para cada pessoa que, por infelicidade, estivesse partilhando o mesmo espaço na rua.
Ao chegarem numa esquina, encontraram Roni que, mais do que depressa veio ao seu encontro.
-"seu guarda", disse o menino ao policial, "se me der um doce eu levo vocês na boca".
Para quem não sabe, "boca" ou "biqueira" é o lugar onde se vendem drogas.
O policial foi ao bar e deu umas balas ao garoto que os levou em seguida à "boca".
Foram presas algumas pessoas, entre elas, sua prória irmã. 






Na foto acima, Roni é o menino à esquerda.

Roni cresceu e a última vez que o vi foi na escola do bairro.
Já mais alto, iniciando uma aparência adolescente, ele se lembrou de mim.
Porém, como sempre acontece com o tempo, já não era o Roni que eu via naquele menino.
Fico feliz em saber que prosseguiu com os estudos, aquele que tinha tudo pra dar errado.

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2004 - Jardim Florense 2, Campinas

Antes de ir ao bairro Parque Oziel, eu estive no bairro Jardim Florense 2.
Eu precisava cadastrar as famílias, mas não havia associação de moradores no local.
Não havia sequer um lider para que eu pudesse contatar antes de iniciar os trabalhos.
Isso é ruim por duas razões: para a minha segurança pessoal e pelo fato dos moradores ficarem deconfiados sobre o que eu realmente estaria fazendo no bairro.
Pouca gente sabe, mas em bairros pobres, muitas famílias são vítimas de golpes praticados por pessoas que se aproveitam muitas vezes de idosos ou pessoas sem instrução e, por essa razão , mais vulneráveis.
Isso faz com que tenham medo de quem vem "de fora".
Não deixa de ser curioso o fato do medo comum, mas diametralmente oposto, dos que estão de fora e dos que estão dentro do bairro.
Eu estava com uma meta apertada e, como empresário, tinha que correr.
Aproveitei o feriado de primeiro de maio, "dia do trabalho".
Comecei a trabalhar por volta das nove horas da manhã e, às seis da tarde ainda estava no local, sem pausa para o almoço.
Repentinamente eu fui surprendido por um menino que tinha a altura pouco acima da minha cintura.
O menino me apontava uma arma: era um assalto.
Cheguei a pensar em chutar a mão do menino, pois não seria páreo para mim naquela distância mas, por um "segundo de razão", lembrei que poderia estar sendo amparado por outras pessoas.
Forcei minha visão periférica e constatei assustado que haviam pelo menos mais dois jovens, esse sim da minha altura, com armas apontando na minha direção.
Entreguei o que tinha, que se resumia a um telefone celular e a bolsa onde estava todo o trabalho do dia, além dos meus documentos pessoais.
Soube depois que, uma semana antes, uma pessoa havia sido morta naquele mesmo local, em um assalto semelhante - faltou ao infeliz o "segundo de razão".

Depois do assalto eu disse ao morador onde eu me encontrava, o dono de um bar, que me ligasse caso encontrasse pelo menos os meus documentos.

Recebi no dia seguinte uma ligação: uma pessoa dizia ter achado os documentos, mas queria uma "recompensa".

Furioso com o dia de trabalho perdido, eu disse que não pagaria, que pusesse fogo nos documentos: "prefiro pagar ao Poupa Tempo e ter de volta meus documentos a pagar a um vagabundo".
Do outro lado da ligação, a pessoa me provocou para discutir pessoalmente, no bairro, sobre o ocorrido.
Eu respondi que não conversava com covardes que se escondiam atrás de uma arma.

Obviamente, fiquei dois anos sem aparecer no bairro.

Voltei entretanto e encontrei outra situação.

Já havia uma associação de moradores e o lider, o Sr Edmilson, uma pessoa que se tornou um amigo, me ajudou no trabalho, vindo a se tornar, um tempo depois, um agente comunitário.


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2002 - Parque Oziel, Campinas

O vice presidente do bairro Parque Oziel estava sempre a me pedir uma oportunidade para seu filho em meu projeto: "ele é um excelente eletricista" dizia ele.
Acostumado com esse tipo de pedido e com limitações de orçamento, eu sempre prometia analisar quando oportuno, mas ia levando o assunto, como diria minha mãe: "em banho Maria".

Eu tinha um eletricista na equipe, que era um morador do bairro Jardim Monte Cristo.
Mas esse eletricista começou a falhar: o alcoolismo era o seu maior problema.
Chegou um momento em que eu tive que despedí-lo, muito a contragosto, pois já havia desenvolvido um sentimento de amizade por ele, fato comum para mim, pois me envolvo sempre com o que faço, muito mais do que talvez o devesse.

Certo dia no Parque Oziel, uma médica que pretava atendimento no posto de sáude improvisado, me procurou aflita: "estamos sem energia e as crianças estavam fazendo inalação quando foi interrompida".
Havia uma equipe da concessionária de enegia no local, mas o eletricista responsável estava irredutível: "estou cumprindo o cronograma de obras".
Eu estava diante do impasse e preocupado com a situação quando o vice presidente apareceu ao meu lado: "chame o meu filho - ele pode ajudá-lo".
O filho dele estava alí - eu me dirigi a ele e perguntei: "você sabe fazer um "gato"?"
Ele me olhou incrédulo.
Completei: "as crianças não podem ficar sem tratamento".
Ele olhou a rede, fez um comentário técnico respondendo como faria a ligação clandestina.
Eu então completei: "faça o "gato", mas o desfaça quando a equipe da concessionária restabelecer a energia no bairro - faça isso e já se considere empregado".

E assim conheci o Moisés, uma pessoa de tamanha grandeza de espírito que, desde então, me ensina a ser uma pessoa melhor.

Seu conhecimento de eletricidade é tão extenso que desafiou muitas vezes técnicos experientes da concessionária em situações futuras.

Autodidata, Moisés merecerá novas citações neste blog.

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2004 - Sorocaba, bairro Habiteto

Estive por lá quando a CPFL colocou a rede nas ruas.
Mais uma vez, a tarefa era o cadastramento das famílias.
Em contato com a assistente social, soube de um grupo de jovens que havia concluído um projeto de inclusão, por problemas dos mais variados.
Precisavam de uma experiência de trabalho, mesmo que fosse temporário.
Eu precisava de 5 pessoas do bairro para o trabalho em campo, mas a assistente social me propos contratar então 10, pagando a metade do que eu pretendia, mas contemplando mais pessoas.
Ocorre que haviam 15 jovens e 5 ficariam fora. A assistente social me disse que eles precisavam passar por um processo de seleção, o que seria parte do aprendizado.
Assim, escolhi 10 dos 15 jovens.
Entretanto, não me conformei em deixar os outros 5 de fora: propus que eles trabalhassem para mim em outra atividade.
Eles foram capacitados e arcaram com a tarefa de realizar palestras sobre o uso consciente da energia elétrica.
Todos receberam uniformes e, sob a minha supervisão, o serviço foi realizado.
Almoçávamos todos juntos, num espaço comunitário - o almoço era parte da remuneração.
Eu me diverti muito com os jovens, muito dispostos e alegres, deixavam bem mais leve o trabalho.
Mas o trabalho chegou ao fim.
Um dia antes, coincidiu com o meu aniversário - eles descobriram a data.
Estávamos almoçando quando repentinamente soou uma sirene.
Todos saíram da mesa para ver o que ocorria.
Percebi que eu devia acompanhá-los, muito embora estivesse acostumado a ouvir sirenes em comunidades e minha reação, na maior parte das vezes, era ficar distante pela minha segurança.
Ao chegar à porta do centro comunitário, uma van com auto falantes estava parada e começou a tocar o hino do São Paulo, time de futebol que eles sabiam que eu torço.
Na sequência, tocou o "feliz aniversário" - era uma homenagem para mim.
Foi uma experiência impar de carinho para comigo.
Foi difícil segurar a emoção.

Um fato curioso: quando programei entrar no bairro, uma pessoa da CPFL me disse que se eu conseguisse entrar naquele local, não conseguiria sair.
Estava agora partindo de lá, deixando amigos e tendo vivido uma experiência que ficaria marcada para o resto de minha vida.


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2002 - Parque Oziel - Gleba B, Campinas

Li uma vez que "O que para um brasileiro é apenas gelo recebe, entre os esquimós, mais de dez nomes diferentes conforme a consistência e a espessura" (http://www.aldobizzocchi.com.br/artigo2.asp).

Essa informação exemplifica o conhecimento e a percepção que caminham na mesma direção: quanto maior o conhecimento que temos sobre algo ou alguém, mais detalhes enxergamos, aumentando nossa percepção para as pequenas diferenças, invisíveis aos leigos.

No bairro Gleba B em Campinas, conheci uma senhora que tem uma filha adolescente que contraria todos os esteriótipos criados para uma garota de favela.

Vivendo num barraco, ela tinha uma coleção de jornais, livros e revistas que traziam informações sobre a Lady Diana, ou "lady Dy", a princesa de Gales que emocionou o mundo pela sua sensibilidade e beleza.

A adolescente, além de um profundo conhecimento sobre a Lady Dy, tinha um português correto, era auto didata e muito interessada em estudar.

O bairro onde estava era também morada de catadores de recicláveis, prostitutas e traficantes, pessoas em sua maioria com muito pouca instrução e sem esse tipo de ambição e valores.

Como esperar uma adolescente assim nesse local?

Pois, assim como ela, encontrei outras pessoas por onde andei.

Aprendi que a favela é um lugar onde as pessoas "estão" e que é errado pensar que as pessoas que lá vivem são de lá, como se pertencessem a um espaço que ditasse as regras de comportamento e destino.

Assim como essa garota pode sair de lá e progredir na vida, muitos que lá estão vieram de situações melhores.

Como prova disso, encontrei uma vez um barraco de madeira muito limpo e arrumado, onde vivia uma mulher que havia sido cabaleireira em um bairro nobre de Campinas.

Problemas com dívidas a levaram ao barraco, única forma viável de moradia para quem não pode pagar um aluguel.

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2003 , Campinas


Certa vez eu visitei as famílias de um bairro em Campinas, o qual preservarei o nome, numa semana de muita caminhada e paciência.

O bairro não é grande, mas o trabalho de conversar com as famílias, porta-a-porta, é cansativo, apesar de compensador.

Ficou faltando apenas uma casa, onde bati palmas sucessivamente sem que houvesse resposta.

Antes de sair do bairro procurei o lider e lhe contei que precisava saber quando poderia encontrar a família naquele endereço.

Ele me olhou incrédulo, respondendo que uma mulher se encontrava naquela casa naquele dia.

Foi então comigo à casa e bateu à porta, anuciando seu nome.

A porta então se entreabriu e uma mulher que eu não conseguia ver falava com o lider da comunidade numa conversa que igualmente não conseguia entender, como se cochichassem.

Ele veio a mim e perguntou de poderia ele mesmo realizar o cadastro.

Ocorre que haviam informações que eu tinha que passar pessoalmente.

Ele voltou e convenceu a mulher a me atender.

Eu me aproximei e o que vi me chocou: era uma mulher de uns vinte e poucos anos, não era feia, mas seu rosto apresentava duas manchas roxas que preenchiam as cavidades oculares de maneira que a tranformavam numa personagem maquiada como para um filme de terror de baixa qualidade técnica.

A mulher me passou as informações necessárias e voltou à sua realidade anônima e introspecta.

O lider me explicou que ela havia apanhado do marido: ele lhes desferiu dois socos, um em cada olho.

Indignado e sem saber o que fazer, fui orientado pelo lider para não levar a informação a ninguém, pois a mulher era esposa do traficante do bairro e não teria sido a primeira vez que sofrera esse tipo de agressão.

"Apanha mas volta pro marido - se você denunciar, pode morrer, então deixa pra lá né".

Até hoje eu me pergunto se deveria ter feito algo e carrego uma dor na consciência pela minha omissão.


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2007 - Jardim Paraíso de Viracopos, Campinas

No Jardim Paraíso de Viracopos, em Campinas, fui cadastrar uma residência para participar do projeto.
Na casa morava o "Bode", um senhor negro muito conhecido no bairro.
Ao chegar, o encontrei sentado ao chão, ao lado de um amigo, depenando pombos mortos.
Seria essa a refeição deles naquele dia.
Os pombos haviam sido mortos a tiros.
Comentei esse fato depois com um colega que questionou a situação: as balas são caras e não justificariam a economia no menu.
Não sei explicar, só sei que foi o que presenciei.


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2007 - Jardim Progresso, Ribeirão Preto

Em Ribeirão Preto conheci um casal excepcional: Ricardo e Claudia, do Jardim Progresso.
Ricardo, um artesão de cabelos longos, muito politizado e emocional.
Claudia, uma intelectual corajosa, extremamente racional.
Um casal completo, formando um equilíbrio perfeito.
Certo dia eu Ricardo me pediu lâmpadas queimadas de iluminação de rua: ele reciclava essas lâmpadas criando peças como castiçais muito belos.
Eu mencionei que o Programa Rede Comunidade recolhia milhares de lâmpadas incandescentes e que seria interessante dar a elas um destino artezanal.
Depois de alguns meses, Ricardo me procurou para mostrar o resultado de sua pesquisa com essas lâmpadas.
Depois de quebrar diversas delas, por aquecimento com maçarico, descobriu um ponto de aquecimento onde, ao invés do vidro estourar, ele se abria.
O resultado foi um vaso, onde até mesmo o soquete das lâmpadas foi aproveitado como base, contendo gel colorido e um pavio: uma lanterna com diversos formatos e cores.
O trabalho já evoluiu e Ricardo procura uma forma de montar uma oficina de reciclagem de lâmpadas descartadas.
A Cláudia, que tem o poder de fazer uma perfeita leitura das pessoas, ajuda muita gente com sua sinceridade e correção, isso sem contar o suco de beterrabas que ela faz com sabor pra lá de especial.
O casal 20 mil que encontrei em Ribeirão Preto e que se tornou parte da minha história.

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2007 - Jardim Monte Cristo, Campinas

Em Campinas, no Jardim Monte Cristo, fui chamado pela associação de moradores para verificar uma reclamação: Dna Dorcelina estava com as contas de luz muito altas. Fui à casa dela e, após uma longa conversa, percebi que moravam na casa 9 pessoas. Concluí então que essa era a razão das contas altas: "imagine só Dna Dorcelina", disse eu, "com nove pessoas em casa, são 9 banhos todo dia - essa é a razão das contas altas".
O ideal seria a colocação de mais um medidor para dividir o consumo, o que me agendei para ação futura.
Voltei porém à associação e relatei o ocorrido, quando fui surpreendido por uma moradora que lá estava: "É isso não moço - Dna Dorcelina toma banho de balde pois quando liga o chuveiro, sai faisca pra tudo quanto é lado".
Aquilo me soou estranho: porque então a Dna Dorcelina não me disse isso?
"vergonha moço, sei lá", respondeu a moradora.
Nunca me pareceu tão verdadeiro o conceito de que devemos "saber ouvir".
Muitas vezes, a verdade não é dita por razões as mais diversas e se você quiser de fato ajudar alguém, deverá primeiro ouvir o que não é dito.

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04/02/2009 - Parque Shalon, Campinas

Recebi a triste notícia da morte de um grande lider comunitário: Sr Antonio, presidente da Associação de Moradores do bairro Parque Shalon, em Campinas.
Foi assassinado, próximo à sua residência, pelas costas, de uma maneira covarde e cruel.
O bairro foi atendido pelo Programa Rede Comunidade e há cerca de 7 anos mantínhamos contato, atendendo solicitações e levando novos benefícios.
No final de 2008, Sr Antonio me chamou ao bairro para solução de problemas de famílias com dívidas.
Levamos um posto avançado, ainda em funcionamento, fizemos visita aos moradores para realização do diagnóstico e, na semana passada, realizamos uma oficina na sede da associação sobre uso racional de energia, com a parceria da Tecnolight.
Nesse dia fiz uma foto, acho que a última.
Tinha um grande respeito pelo Sr Antonio, pois era um lider que lutou pela melhoria do bairro e já começava a ver realizadas algumas de suas mais antigas reivindicações, como rede de esgoto, água encanada, energia e outros benefícios.
Foi vítima de sua própria luta, pois acreditava na justiça social e, ao mesmo tempo que representava as famílias necessitadas, combatia aqueles que não dejavam a cidadania e o bem comum.
As lideranças comunitárias pretendiam fazer menção de repúdio ao ocorrido, cobrando das autoridades a segurança e punição aos responsáveis por esse ato covarde.
Afinal, mais um "Antonio" do povo de Campinas se vai, e pela mesma causa: a inclusão social.
Mas nada disso ocorreu.
No velório, encontrei com sua esposa, inconsolável, me dizia que tentou convencê-lo em sair daquele bairro, pois constantemente recebia ameaças.
Mas seu amor pelo bairro o impediu de ouvir a esposa.
Depois de uns seis meses, fui procurado por ela: havia assumido as questões do bairro.
Ainda hoje o bairro é objeto de atenção da segurança pública.
Ainda me lembro de seu português errado, "reuni os moradori", "levei o potrocolo"...
Hoje ecos do passado.

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2001 - Campinas, Jardim São Luiz


Reuni minha equipe, composta por moradores do bairro capacitados para o serviço de cadastramento das famílias no bairro, numa segunda-feira.
A proposta era iniciar os trabalhos na semana seguinte.
Na quinta-feira daquela semana entretanto, um eletricista do bairro subiu em um poste para fazer uma ligação clandestina e recebeu uma descarga elétrica, vindo a falecer.
Na semana seguinte, as famílias achavam que nossa presença no bairro estava acontecendo por causa do acidente fatal e sua repercussão na imprensa.
Superadas essas dificuldades, levei uma empresa parceira para realizar uma ação educativa no bairro.
Uma das sócias procurou o lider do bairro e combinou que faríamos um almoço comunitário em sua casa no dia do evento.
Em um dado momento, a esposa do lider chamou essa pessoa na cozinha e abriu sua geladeira: havia apenas uma garrafa de água gelada, e nada mais.
Foi explicado é claro que o almoço seria totalmente patrocinado pela empresa, mas a experiência vivida por aquela empresária a marcou para o resto de sua vida.


Em 2010, o mesmo lider me ligou, pedindo um atendimento no bairro.
Agendei esse atendimento e perguntei se estava tudo bem.
Ele me disse que sua família estava sem o que comer naquele dia.
Fui então a um supermercado e comprei duas cestas básicas, pois seu filho morava com ele e constituía uma segunda família na mesma situação.
No dia seguinte eu comentei com uma assistente social e ela me pediu o endereço dele.
Foi então no local, fez um levantamento de sua situação social e o incluiu num projeto de 6 meses de cesta básica, pelo governo.
Também levou outros benefícios.
Fiquei feliz com a solução do problema, mas depois pensei comigo: se o lider comunitário, há tanto tempo naquele bairro, não soube resolver seu problema que se resumia na procura de uma assistente social, como poderia então ajudar às famílias que representava?
Esse fato demonstra o despreparo de lideranças comunitárias para o exercício da cidadania e o descaso do poder público em levar informações e orientações sobre os recursos disponíveis de assistência social. 
Muitas vezes são políticos, ou candidatos a cargos políticos, que aparecem com a solução, para depois trocar por votos - é melhor não ensinar a pescar, mas levar o peixe e vendê-lo por 4 anos de salário fácil.




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2009 - Jardim Santa Lúcia, Núcleo Unidos Venceremos, em Campinas


Fui chamado por uma lider local para conhecer a situação de abandono que a comunidade estava vivendo.
Não havia rede na viela que, com um córrego rasgando-a ao meio, tinha ameaçada a situação de algumas das residências.
Foi muito interessante a visita, pois o bairro é representado por um grupo de cerca de 5 senhoras - quando cheguei, e isso se repete sempre que alí vou, elas põem cadeiras na rua em forma de círculo e aí começam as reivindicações.
Daqui há pouco vem um cafezinho e a gente acaba numa conversa longa e gostosa.
Pude ajudar aquelas famílias mas nem todas conseguiram se beneficiar.
Entretanto, elas certa visita que fiz, elas me pediram emprego para as pessoas do núcleo.
Me contaram então que haviam famílias que viviam com apenas R$150,00 a cada 2 meses, se oferecendo para testar produtos cosméticos para uma indústria.
Alguns produtos causavam alergias e problemas para quem fazia os testes.
Eu fiquei estarrecido e quis denunciar a indústria, mas elas me pediram para não tomar essa iniciativa, pois ficariam até mesmo sem os R$150,00 por bimestre.
Fiquei mais indignado ainda quando soube que esse tipo de teste é legal.
É quando o "legal" extrapola o "moral".


Dias antes do Natal de 2009 fui chamado ao bairro: elas me esperavam com um presente de Natal. Uma carteira. Foi um esforço que fizeram que trouxe para mim uma grata satisfação pelo carinho dessa comunidade esquecida.


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Campinas - 2011


Não ocorre todo dia, mas às vezes, ao fazer meu caminho em direção ao trabalho, encontro uma senhora carregando uma carroça coberta de materiais recicláveis, colhidos nos lixos das casas do bairro onde moro.


É Dona Ginalva, lider comunitária do grupo de famílias moradoras na Rua Moscou, que agora passa por urbanização.


Saio sempre cedo, pois gosto de chegar antes de meus colegas, para verificar minha agenda e programar meu dia sem a interferência do telefone, que não me permite pensar durante o dia.


Dona Ginalva já está com a carroça cheia logo cedo - não sei a que horas ela acorda, mas deve ser muito cedo.


Sua idade eu não consigo avaliar, mas já ouvi contarem que ultrapassa os sessenta anos.


Além do trabalho duro, encontra sempre um tempo para representar a comunidade onde mora.


Há algum tempo eu soube, que ela dedicou dias de trabalho para obter recursos para a compra de brinquedos para as crianças do bairro.


Me sinto pequeno diante dessa senhora.


Quando a vejo eu sempre recebo uma lição de humildade, de esperança e de persistência.


Não é preciso nenhuma palavra dela.




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Comments

elisa said…
Querido Dr Joao Abeid Filho:
Li tudo com muita atencao. Realmente eh um "documentario"da sua luta. Fico feliz em ver que foi e estah sendo uma luta de sucesso.
Maria Elisa

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