DISSONÂNCIA

Dirijo o automóvel da empresa numa rua margeada pelo mangue. Em ambos os lados vejo árvores sem folhas, mortas, tecendo um cenário sinistro e imagino como seria passar nesse lugar à noite. Vêm-me à mente que, se existe mangue de ambos os lados, devo estar passando por uma rua construída sobre esse manguezal, ou seja, um crime ambiental oficializado.

O cenário reflete minha alma, que parece amortecida.
Sentimentos confusos habitam minha mente. Tenho dificuldade em entender o que ocorre com certas famílias. Quando relato o que vivenciei, ouço julgamentos sobre as situações observadas. Parece fácil, para algumas pessoas, resolver os problemas alheios e, por essa razão, armazenarem respostas prontas e julgamentos rápidos.

Se for me deixar levar por esse tipo de interpretação, vou acabar acreditando que as pessoas são falsas, arquitetas de simulacros com o objetivo de obtenção de privilégios.
Simulacros, todo o mundo me parece um simulacro, nada do que vejo parece real, mas, representação, cenários.

Volto a observar a rua, o manguezal atravessado por ela e me recordo de famílias que moram sobre esse mangue e que são alvo de ações e omissões do município que as vê como invasores. Conheço algumas dessas famílias: são apenas famílias pobres, com crianças pequenas e uma vida sem qualidade. São pessoas boas e pessoas ruins: são humanos.

Um rapaz nos procurou, pedindo uma ligação de água em seu barraco. Contou que trabalha, trocou um automóvel pelo barraco para livrar-se do aluguel. Tem mulher e uma criança de colo. Está em área de proteção ambiental, é um invasor perante o município. Eu vejo apenas uma família em busca de uma substância vital: água potável, direito humano.


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