Aos amigos os favores, aos inimigos, a lei ...(Maquiavel)




No dia 24 de maio deste ano de 2019, a empresa distribuidora de energia elétrica CELESC, acompanhada de policiais, adentrou a um acampamento cigano e prendeu dez moradores por furto de energia. A prisão, apesar de fundamentada na legislação, causou-me indignação pela forma como se deu.

Esse acampamento caracteriza-se por ser o único acampamento conhecido em que as mulheres assumiram o controle. Existem muitas matérias a esse respeito na mídia e sugiro ao leitor a pesquisar no Google: “primeiro acampamento cigano liderado por mulheres”[1].

Em resumo, em 2011, viúvas ciganas ocuparam um terreno vazio em nome da prefeitura de Joinville, decidindo de forma inédita, assumir um novo acampamento sob seu controle. Desejavam criar seus filhos longe dos problemas que tinham com os acampamentos tradicionais pelos quais passaram, onde presenciaram crimes e consumo de drogas.

Essa atitude inédita levou-as a se fixar, rompendo com o ciclo de migração. Como mulheres, tiveram que assumir tarefas antes assumidas pelos homens.
Sem experiência na condução de sua subsistência, com saúde fragilizada, enfrentaram o racismo, fome, mendigaram.
Após sensibilizarem grupos humanitários locais, passaram a acessar os serviços sociais, de saúde e escola para as crianças.

Misteriosamente, o terreno, antes em nome da prefeitura, passou para o nome de um grande especulador imobiliário conhecido na cidade.
Sofreram, a partir de então, ameaças, vandalismo e agressões.

O acesso à água se dava por meio de compra de baldes, vendidos por uma moradora vizinha, que eram carregados diariamente até o acampamento.
Doentes, uma veio a falecer. Outra delas espera na fila do SUS para operar a coluna, sem previsão de data. Há cerca de um mês, estive com ela, que me trouxe um desejo em se suicidar, pelas dores que sofre e pela fome e demais dificuldades que enfrentam.
Para se manterem, vendem panos de cozinha no centro da cidade e, eventualmente, costuram vestidos para festas ciganas de um grupo do Rio Grande do Sul. Festas no acampamento não são permitidas, por não aceitarem o uso de bebidas alcoólicas e para evitarem transtornos que invariavelmente ocorrem nessas festas por parte de alguns que excedem os limites da boa convivência.

Mas, voltando ao caso da prisão, um aparato de policiais civis da segunda delegacia de Joinville, acompanhados também pelos 1º  e 5º Departamentos de Polícia, entraram no acampamento e perguntaram quem seriam os responsáveis pelo mesmo.
De forma ingênua, até mesmo por ser do costume delas, quando se entra no acampamento, todas vêm ao encontro, como forma de auto defesa. 
Foram presas por furto de energia e, por terem se apresentado em grupo, acusadas de associação criminosa. Na prisão, voluntários tiveram que levar comida e até mesmo papel higiênico.
Três delas amamentam e houve muita discussão para que permitissem a entrada das crianças para amamentação. Na manhã do dia seguinte, entretanto, esse acesso foi negado.

A CELESC tem se valido de ações policiais como essa na cidade, tendo realizado uma ação assim em um condomínio de interesse social Minha Casa Minha Vida, ocasião em que várias pessoas foram presas em seus apartamentos por furto de energia.
Interessante saber que não se tem notícias de prisão de pessoas que furtam energia em outros locais, muito menos que envolvem pessoas de poder aquisitivo maior.
O furto de energia é crime, assim como o furto de água. Entretanto, o rigor praticado pela CELESC não se justifica, uma vez que não se registram ações anteriores de negociação com as famílias.
Com renda limitada e insuficiente, com crianças, muitas famílias perdem a capacidade de arcarem com os custos dos serviços citados e acabam caindo na clandestinidade.
As ciganas tentam á tempos pedir uma ligação de energia, o que lhes é negado pela empresa.

A empresa de saneamento local concedeu a regularização através de parceria com uma igreja vizinha. Após o envolvimento do atendimento social da empresa com a comunidade e voluntários, a questão foi resolvida e hoje elas pagam regularmente pelo consumo de água potável.

Se as ciganas recorreram ao uso clandestino de energia por razão de negação do acesso ao serviço por parte daquela concessionária, essa concessionária, com apoio do poder público, infringiu diversos direitos humanos ao aprisionar mães lactentes sem condições de defesa e interpretar, de forma a causar perplexidade, um grupo de mulheres vulneráveis como sendo formadoras de quadrilha, como associação criminosa.

Existem instituições e profissionais voluntários simpáticos à causa delas que estão atuando para que a situação se resolva e que os direito violados sejam reparados.

Para a população, a imprensa apenas registra a prisão de ciganos, o que reforçará o preconceito contra um grupo de famílias que já enfrentam problemas maiores que sua capacidade de resiliência.




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