ADEUS ÀS CALINS


No final de 2016, o Atendimento Social da empresa de saneamento em que trabalho, na cidade de Joinville, foi procurado por um  grupo que prestava apoio a um acampamento cigano na Rua Agulhas Negras.

Fomos ao local para entender a situação.


Encontramos um acampamento cigano, liderado por mulheres, cinco irmãs viúvas vivendo em situação de vulnerabilidade social.


Sem acesso à água, por não serem proprietárias do terreno que ocupavam, comprava água de uma vizinha que se situava no lado oposto da rua. 


Essas mulheres ciganas, que se autointitulam “Calins”, sofriam com doenças e dores que se agravavam com a tarefa de carregar baldes de água diariamente.


A expectativa de atendimento era nula, mas, observamos que o terreno era, em parte, propriedade de uma igreja, que utilizava como estacionamento para seus fiéis.


Assim sendo, em reunião com o pastor, conseguimos que fosse solicitada a ligação de água para esse terreno, de onde as Calins levavam, então, a água por mangueira até o acampamento.

A ligação de água se deu no dia 16 de janeiro de 2017.


O desafio agora seria como apresentar contas dentro de sua realidade, afinal, haviam cinco tendas, cada qual com uma das irmãs e seus filhos e netos.

De forma inédita, definimos como “economia” cada uma das tendas e todas foram incluídas na Tarifa Social.

Esse novo modelo exigiu acompanhamento constante, pois, o número de tendas alterava de tempos em tempos, com viagens de umas famílias para São Paulo ou chegada de parentes ciganos que ficavam por uma pequena temporada.


O Atendimento Social fez esse acompanhamento, levando apoio, doando cestas básicas e envolvendo colegas em trabalho voluntário.

  

Em todo esse tempo, as faturas foram pagas sem transtornos para a Companhia Águas de Joinville.


Ainda em dezembro de 2017, o Portal Virtual GELEDÉS publicou uma matéria sobre as Calins, onde afirmava ser o primeiro e único acampamento cigano do mundo a ser liderado por mulheres.


 

Disponível em: https://www.geledes.org.br/historia-do-unico-acampamento-cigano-chefiado-por-mulheres/#:~:text=Fundado%20em%202011%20por%20tr%C3%AAs,machismo%2C%20racismo%20e%20o%20desamparo.&text=Adecis%C3%A3o%20foi%20un%C3%A2nime.,sete%20irm%C3%A3s%20da%20fam%C3%ADlia%20Fernandes.


Anaíra Sarmento (Azmina), relatou a história das Calins: 


“As viúvas, de etnia Calon, ou Calins, como são chamadas as mulheres do grupo, tinham apenas duas opções: ou mantinham-se unidas, somente entre mulheres, com a possibilidade de enfrentarem um padrão de vida precário; ou teriam que morar em São Paulo, às custas de um cunhado traficante de armas e entorpecentes, que negociava com ciganos e gadjons – os não-ciganos.

Ao escolherem a primeira opção, tiveram que assumir a responsabilidade de encarar a represália dos familiares, assim como os obstáculos que viriam a surgir nos próximos cinco anos de suas vidas.”


A luta pela sobrevivência tinha dificuldades como o estranhamento entre os próprios grupos ciganos que não aceitavam a quebra de uma formação machista, aceita como cultural.


Outra dificuldade adveio com a ocupação no espaço em Joinville: inicialmente definido como terreno da Prefeitura e, portanto, público, foi posteriormente considerado como propriedade privada de um grupo influente em Joinville e que travou uma guerra judicial para expulsão e retomada do espaço para fins imobiliários.


Aliado a isso, o preconceito na região, que as fizeram correr riscos com pedras atiradas por pessoas que passavam à noite e até mesmo uma tentativa de incendiar a tenda da Lindacir (lider do acampamento).


Apesar de termos apoiado no fornecimento de água potável ao acampamento, a empresa de energia elétrica local não ofereceu a mesma oportunidade. Levadas ao consumo irregular por impossibilidade alternativa, chegaram a ser presas certa ocasião.


Nas muitas visitas ao acampamento, sempre recebido com carinho pelas Calins, encontrei a Lindacir com discurso suicida.


Ficaram sem energia elétrica por definitivo. Sem poder ter uma geladeira, consumindo água quente no verão, uma vez que a mangueira que alimentava o acampamento ficar exposta ao sol, as dificuldades só aumentaram.


A rede de apoio conseguiu alguns benefícios, como renda mensal, para algumas delas, mas, insuficiente para a sobrevivência, vendiam panos de prato ou doces no centro da cidade.


Em uma das audiências, realizada neste ano, tive a oportunidade de depor a favor delas, numa ação que almeja o despejo.


Hoje, tomei conhecimento de que decidiram abandonar o local, ameaçadas que foram por um grupo de homens que invadiram o acampamento e as fizeram dormir por dois dias na rua.


Chegaram a chamar a polícia, que foi ao local, mas, após se retirarem, novamente tais homens retornaram ao local, intimidando-as.


Lindacir entrou em contato comigo no dia de hoje, solicitando o desligamento da água no acampamento, informando que estão de partida para outra cidade.


Uma história de mulheres viúvas, que romperam com um grupo e formaram seu próprio acampamento para criar seus filhos de forma digna e distante de más influências, protagonistas e pioneiras no mundo nessa formação, que encontrou preconceito, intimidação e vulnerabilidade.


Elas se vão, deixarão saudades e a certeza de que continuamos a punir o protagonismo feminino, apagando da história da cidade um episódio que poderia nos servir de referência e orgulho.

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