DESAFIOS DO ATENDIMENTO UNIVERSAL EM EMPRESAS DE SANEAMENTO
INTRODUÇÃO
As empresas prestadoras de serviços de saneamento
operam num mercado que cresce juntamente com os índices demográficos e em um
modelo de negócio onde o cliente é cativo, ou seja, sem concorrentes que possam
exigir estratégias de mercado para atendimento da demanda pelos serviços.
Entretanto, a despeito do fato de não haver concorrência direta, existem
mercados não explorados, como os que se abastecem com água de poços, assim como
clientes que recorrem ao consumo irregular.
Uma importante mudança no cenário atual merece
destaque neste estudo: o saneamento ganhou status de “direito humano” pela
Organização das Nações Unidas – ONU, o que traz novos desafios às empresas que
atuam nessa área, pois, as responsabilidades tomam outras dimensões. Nesse novo
contexto, até mesmo os moradores com hábitos de rua passam a ser elegíveis aos
serviços de saneamento de forma oficial.
Esse momento histórico trás a necessidade de
revisão de paradigmas, que não se dará de forma amena. Historicamente, o
serviço de saneamento tem sido vinculado à propriedade privada, de forma que
somente os proprietários de lotes têm o direito de requerê-los. Como as cidades
crescem em seus limites periféricos, toda a estrutura de atendimento aos
serviços são idealizadas para regiões de grande adensamento e para loteamentos
regulares, deixando parcela da população desassistida ou no aguardo de obras
futuras, muitas delas sem previsão ou, quando existem, em prazos que superam
uma década. Sendo a água uma necessidade básica humana, muitas famílias
recorrem ao consumo irregular da água tratada, pela impossibilidade de acesso
no modelo estabelecido, pois, o crescimento periférico muitas vezes se dá por
moradias em terrenos irregulares.
Com relação ao esgoto, a situação se agrava ainda
mais. Sem recursos para afastamento e tratamento do esgoto doméstico, muitas
famílias convivem com dejetos a céu aberto, comprometendo a saúde pública pela
exposição às doenças correlacionadas com essa questão ambiental. Estamos,
portanto, vivendo um momento em que interesses opostos se confrontam: a defesa
da propriedade privada contra um direito humano reconhecido agora em esfera
mundial.
Agravando essa situação, as políticas voltadas à
redução do Estado promovem um ambiente favorável à privatização desses
serviços, trazendo o lucro como objetivo final e tornando a oferta para
populações periféricas um fator de prejuízos e, consequentemente, de
desinteresse de empresas privadas.
Qual seria a saída para um atendimento
universalizado dentro desses novos cenários? Essa questão será tratada neste
trabalho considerando hipóteses que envolvem propostas de novos paradigmas e
novas tecnologias, seus impactos, viabilidade e as tensões que o momento aflora
no debate político nacional.
1.
Um pouco da
história do Saneamento no Brasil
O primeiro indício de saneamento
no Brasil ocorreu em 1561, quando Estácio de Sá mandou escavar no Rio de
Janeiro o primeiro poço para abastecer a cidade. (BARROS).[1]
O início do saneamento no Brasil se dá com a
construção de poços, chafarizes e drenagem individual em terrenos. No final do
século XIX, o modelo de distribuição de água encanada começa a ser implantado,
inicialmente a cargo de empresas privadas sob concessão do estado, em sua
maioria de origem inglesa. O descontentamento dos serviços prestados por essas
empresas levou à estatização do serviço no início do século XX e a
comercialização deu-se a partir dos anos 40.
O setor passou por um processo de estruturação e
normatização, passando a oferecer espaço para empresas tanto públicas como
privadas e, já em 2014, cerca de 10% da participação no setor já estava, mais
uma vez, nas mãos de empresas privadas.
Existem, no momento, empresas públicas estaduais, públicas
municipais e empresas privadas que começam a ter maior espaço através de
mudanças no marco regulatório do setor. Diante do cenário nacional, onde se
sabe que cerca da metade da população nacional não dispõe de tratamento de
esgoto doméstico e da significativa parcela da população que não tem acesso nem
mesmo à água tratada, correntes governamentais acenam para o investimento
privado como forma de aceleração do processo de universalização dos serviços.
O debate nacional passa pela luta entre municípios
que se emancipam de empresas estaduais, assumindo o saneamento em processos de
disputa com um sentimento de conquista, além da resistência de instituições
contra o modelo de privatização, com a alegação do possível desinteresse do
investimento privado em áreas empobrecidas e municípios menores que não
apresentariam retorno financeiro.
A luta entre políticas favoráveis à privatização e
as que não apóiam esse princípio teve avanços e retrocessos para ambos os lados
ao longo da história, mas, neste governo as empresas privadas encontram espaço
para aumentar sua participação no setor. O governo atual alega que somente a
iniciativa privada teria recursos financeiros para investimento na
universalização dos serviços nos prazos desejados.
2.
A vinculação
à propriedade privada, suas motivações e conseqüências
Nas mãos do estado, o modelo nacional para o
saneamento esteve atrelado aos interesses dos governos, estaduais ou
municipais.
A desigualdade social com o sempre presente abismo
entre renda e propriedade entre classes, com grande concentração de renda e má
distribuição da mesma na sociedade como sendo uma característica da história
nacional, impulsionou o crescimento populacional de forma desordenada.
Nas grandes cidades, as famílias com renda
insuficiente povoam as periferias e interstícios urbanos. Sem renda suficiente
para uma ocupação viável, ocupam espaços não autorizados, terrenos públicos ou
privados, para a construção de suas frágeis residências.
A ameaça à propriedade pública e privada gera
tensões constantes e leva o estado a impor barreiras para a sustentação dessas
famílias, uma vez que esse se mostra incapaz de evitar e remover essas famílias
para outros espaços por falta de estrutura e políticas públicas que poderiam
(deveriam) solucionar essa situação. O acesso à água tratada torna-se, então,
uma ferramenta para impor limites na ocupação desses espaços e, dessa forma, o
estado impõe a condição de acesso à propriedade privada.
Sem alternativas, essa parcela da população recorre
ao acesso por meios irregulares. Apesar dos mecanismos de punição movidos pelo
estado, a situação se instala e cresce com os índices demográficos. As perdas
na distribuição de água são significativas, em parte por razão do acesso não
reconhecido e não autorizado ao serviço. Os custos dessa perda oneram o
sistema, postergam investimentos e tornam as tarifas mais altas.
Com relação ao afastamento e tratamento do esgoto
doméstico, a situação não recai somente sobre as empresas, mas, reflete
diretamente na saúde pública, onerando sobremaneira o estado por conta do
adoecimento dessa população. Além disso, afeta os índices de desenvolvimento
humano, trazendo conseqüências que interferem na captação de investimentos
externos e na reputação da nação diante do contexto mundial.
A questão do recente reconhecimento do saneamento
como “direito humano” pela Organização das Nações Unidas – ONU, na qual o
Brasil é signatário, traz um novo olhar para a situação dessas famílias. Sendo
o saneamento um “direito humano”, o bloqueio ao acesso para essa parcela da população
passa a ser uma violação desse direito.
Faço um comentário à parte, por não resistir à
oportunidade: afinal, acesso ao saneamento sempre foi condição de sobrevivência
e saúde pública – a questão do tardio reconhecimento por parte da ONU chega a
ser vexatória, na minha humilde opinião.
Esse novo enfoque, com o reconhecimento do
saneamento como direito humano, leva o modelo atual em choque direto com os até
então objetivos do estado na defesa da propriedade privada. Apesar disso, na
prática, o modelo permanece inalterado, com as empresas negando acesso ao
sistema como garantia da propriedade privada.
Alguns sinais de mudança começam a aparecer,
timidamente, mas sempre com olhares atentos do estado e através de ações que
mais se assemelham a contravenções do que de garantia de direitos.
3.
O modelo de produção industrial e as grandes (e
onerosas) obras
As empresas de saneamento surgiram para atender às
demandas de abastecimento, sempre com a necessidade de investimentos em
infra-estrutura.
É fácil entender que, num cenário assim, o foco se
concentra em obras, fortalecendo o olhar tecnicista para o negócio.
Contribuindo para isso, o ambiente sem concorrência traz a estabilidade capaz
de diminuir a atenção para o mercado, no que se refere às decisões e
comportamentos dos clientes. Assim, as empresas cresceram numa visão
industrial, de produção de grandes obras com capacidade de atendimento a
grandes centros urbanos.
Em contrapartida, pequenas localidades isoladas,
assim como agrupamentos rurais ficam descobertas nas prioridades e planos de
expansão dessas empresas, sem que se verifiquem modelos para atendimento
adequados, de baixo custo e com tecnologias alternativas. Outro fator que
sustenta esse tipo de comportamento é o interesse político na construção de
grandes obras, pelo fato de trazerem visibilidade política.
Trata-se de um modelo que se expande lentamente,
por desconsiderar modelos alternativos para universalização e, assim sendo,
depende de grandes investimentos públicos.
Num cenário contemporâneo, quando a tecnologia
apresenta novos modelos e evolui com rapidez histórica nunca antes verificada,
manter-se com o modelo de gestão citado traz um grande descompasso com as
necessidades emergentes, tanto do ponto de vista do atraso na universalização
dos serviços no Brasil, quanto do novo contexto político e legal.
Esse modelo instalado não é capaz de trazer os
resultados impostos pela universalização em prazos coerentes. Dizer que a
universalização dos serviços de saneamento se dará em 2033 – o que se considera
impossível, apesar de previsto – é o mesmo que condenar grande parcela da
população a manter-se na condição de saúde pública precária por uma geração.
"A quantidade de brasileiros sem água potável equivale a toda a
população do Canadá e a quantidade sem coleta de esgoto equivale a duas vezes a
população da Espanha", compara Édison Carlos, presidente da Trata Brasil.”[2]
Apesar de parecer correto o pensamento industrial
que contempla quantidade, o Brasil encara agora, a metade da população que
reside, grande parte, em áreas isoladas, onde esse modelo não funciona.
4.
Aspectos culturais
A experiência que tenho no setor de saneamento me
diz que parcela significativa da sociedade vincula os serviços de saneamento às
prefeituras, o que não deixa de ser verdade, visto que a outorga dos serviços
pertence, de fato, ao poder público, independentemente da empresa ser pública
ou privada. Assim sendo, não se tem a noção dos serviços de saneamento como
“mercadoria”, passíveis de custos e cobrança. Muitos acreditam que o valor
cobrado é estipulado pelo poder público e que deveria ser coberto pelos
impostos, como IPTU, por exemplo. Esse desconhecimento se fundamenta na origem
dos serviços de saneamento, que, de fato, no início histórico era cobrado sem
medição de consumo, mas como “taxa” fixa.
Parte da população não percebe a complexidade que o
sistema requer, com a captação, tratamento e distribuição de água, e com a
coleta e tratamento do esgoto. Esse cenário traz dificuldades no reconhecimento
dos reais custos de oferta desses serviços por parte da população.
Agravando essa situação, os custos com os serviços
de saneamento aumentam na proporção dos desequilíbrios ambientais, que diminuem
as nascentes e poluem os rios, exigindo cada vez mais esforços, e recursos,
para transformar água poluída em água potável. Esse fator encarece os serviços
e faz com que os custos de acesso aos serviços pesem cada vez mais no orçamento
das famílias, especialmente aquelas de menor renda.
5.
Os novos paradigmas, novos modelos e tecnologias
Vivemos um momento em que não será possível adotar
o pensamento cartesiano tradicional, mas, para evoluirmos em qualidade,
resultados e velocidade, as soluções poderão ser muitas, uma para cada
situação, adequadas e personalizadas.
Sem que sejam necessárias novas descobertas
tecnológicas, soluções já existentes podem ser trazidas sob nova luz. Em
primeiro lugar, faz-se necessário olhar para o problema de forma pormenorizada,
de maneira a identificar etapas, priorizar investimentos e ganhar velocidade
nos resultados, principalmente os impactos na saúde pública.
Sobre o esgoto, existem etapas a serem
consideradas, sendo as principais:
- o afastamento do contato humano: deposito dos
dejetos em fossas individuais ou coletivas;
- a coleta do esgoto: consiste na retirada do
esgoto produzido para local onde se dará o tratamento;
- o tratamento do esgoto: através de estações de
tratamento de pequeno, médio ou grande porte, para devolução em forma de água
tratada (não potável), aos rios.
No pensamento dominante, universalizar o serviço
pressupõe a construção de estações de tratamento – ETEs, de custo elevado e de
grande porte. Entretanto, a solução poderia dar-se de forma gradual.
Se todo o esgoto doméstico gerado for afastado do
contato humano, o problema de saúde pública será mitigado de forma expressiva. O
depósito em fossas de diversas tecnologias, como as sépticas, zona de raízes
etc, ainda são soluções viáveis e não utilizadas em muitos lugares Para isso,
basta a construção de fossas individualizadas ou coletivas. Um investimento em
recursos que cheguem às famílias, de forma subsidiada para aquelas com renda
insuficiente para arcar com o serviço, solucionaria o problema rapidamente.
Evidentemente, esse expediente não resolveria a
questão da contaminação do solo, num primeiro momento. Entretanto, outras
etapas viriam, em médio prazo, com a construção de redes coletoras. Essas redes
coletoras poderiam levar o esgoto doméstico para pontos estratégicos, onde
seria feita a coleta, por meio de caminhões, por exemplo, e levados às estações
de tratamento já existentes. Esse modelo já contemplaria o processo de
tratamento e devolução do esgoto em forma de água tratada para os rios. No evento
1º Workshop de Saneamento Básico organizado pela Assemae Regional de Santa
Catarina, realizado nos dias 04 e 05 de novembro de 2019, o professor Sr. Pablo
Heleno Sezerino[3]
apresentou modelos alternativos de tratamento de esgoto para comunidades isoladas,
de forma descentralizada, defendendo o modelo como solução para antecipação na
universalização do atendimento no país. Além
de resolver o problema para essas comunidades, outros ganhos poderiam ser
identificados no processo, como, por exemplo, o uso da água não potável, após
tratamento, em plantações, no caso das comunidades rurais.
Por fim, novas estações de tratamento poderiam ser
construídas com a finalidade de atendimento à universalização. Esse modelo
permitiria a participação da sociedade civil, envolvendo voluntariado e
atraindo parcerias. Seria uma alternativa de aceleração do atendimento em
etapas que se dariam paralelamente, reduzindo os impactos na saúde e no meio
ambiente de forma crescente e atendendo a todas as situações, incluindo as comunidades
isoladas.
6.
Experiências Exitosas em Joinville/SC (acampamento
cigano e comunidade quilombola)
Pelo fato de trabalhar na equipe social da
Companhia Águas de Joinville no estado de Santa Catarina, cito dois projetos
que foram exitosos naquela empresa, pois, participei diretamente deles e posso
traduzir com muita propriedade os percalços e os resultados alcançados.
Esses casos demonstram as barreiras de acesso aos
serviços de saneamento para parcela da população que não apresenta o perfil de
propriedade do espaço onde residem, assim como formas de atendimento bem
sucedidas por razão do envolvimento de parcerias, voluntariado e, acima de
tudo, determinação para o alcance de soluções além do esperado pelo setor.
5.1 Atendimento às Calins[4]:
Acampamento Cigano em Joinville/SC
No ano de 2011, irmãs viúvas da etnia Rhomani,
migraram para a cidade de Joinville, no estado de Santa Catarina, em busca de
sua liberdade. Deixavam para trás uma história de abusos, violência e ameaças.
Desejavam criar seus filhos em outro ambiente, longe das drogas e de todos os
conflitos pelos quais passaram. Mulheres, assumiram a montagem de um
acampamento onde elas se tornaram protagonistas. O mundo Rhomani fora abalado:
pela primeira vez na história e no mundo, um acampamento Rhomani passou a ser
liderado pelas mulheres[5].
Essa decisão trouxe seu preço: sem a experiência anterior da liberdade e
protagonismo, tornaram-se vulneráveis. Passaram a sofrer com a discriminação,
não somente por parte da população local, mas também por parte dos Rhomani, que
as acusavam de transgredir os costumes e cultura da etnia.
O terreno onde ocuparam tornou-se objeto de
disputa. Inicialmente em nome da prefeitura, como espaço público, após a
ocupação passou a ser reivindicado por um grupo imobiliário de grande
influência. A disputa encontra-se na justiça. Tentaram o acesso à água tratada,
mas, não dispunham de documentação que permitisse esse acesso. Para manterem-se
abastecidas, passaram a comprar água de uma vizinha, que oferecia certa
quantidade de água diária mediante o pagamento mensal por tenda no acampamento.
O caso ganhou a atenção da AMSK – Brasil,
Associação Internacional Maylê Sara Kali, organização que se ocupa com os
direitos humanos dos povos Rhomani no Brasil. No ano de 2016, chegou ao
Atendimento Social da Companhia Águas de Joinville, empresa de saneamento que
atende àquele município, um pedido de avaliação sobre a possibilidade de
atendimento àquele acampamento Rhomani. Com incredulidade, o grupo de
Atendimento Social foi ao local, ciente das dificuldades de acesso por conta da
ausência de documentação exigida legalmente (propriedade privada). Ao chegar ao
local, as Calins propuseram, em sua ignorância técnica, que fosse colocada uma
ligação na casa da vizinha que lhes fornecia água, para que passassem a pagar
pelo consumo real. Entretanto, essa situação não se apresentava viável, pelo
fato de que teriam que passar uma rede que as atendesse em uma rede particular,
debaixo de uma rua de acesso público.
Descartada essa solução, foi feita uma observação
sobre a disposição do acampamento no terreno. Percebeu-se que o terreno tinha a forma de um
grande “T”, sendo parte dele de propriedade desconhecida. Após pesquisa,
chegou-se ao proprietário de parte desse terreno: uma igreja situada aos fundos
do acampamento, que desejava construir um estacionamento no local. A grupo de
Atendimento Social fez contato com o pastor dessa igreja, que aceitou, não sem
apresentar ressalvas, solicitar uma ligação de água para o terreno de sua
propriedade, dando acesso à água tratada para as Calins. No dia 16 de janeiro
de 2017 foi feita a ligação de água para o acampamento.
Por ação da AMSK e de voluntários, as Calins
tiveram acesso aos benefícios sociais e, por essa razão, foi possível a
classificação pela Tarifa Social Especial, quando oferecemos tarifa
diferenciada para o consumo de até 15 m3 mensais. A ligação de água foi recebida com grande
entusiasmo pelas Calins e também para o grupo de Atendimento Social da
Companhia Águas de Joinville. Além do acesso à água tratada, elas tiveram uma
melhora na qualidade de vida, uma vez que não precisavam mais carregar galões
de água diariamente, o que lhes trazia dores e desconfortos. O custo mensal
também caiu.
Preocupados com o consumo mensal, temendo que as
faturas trouxessem valores elevados, além de sua capacidade orçamentária, o
acampamento foi visitado por uma técnica de educação ambiental da Companhia
Águas de Joinville, que pretendia levar informações sobre uso racional da água.
Entretanto, a visita deu-se em um dia de chuva e presenciou-se a prática da
captação da água de chuva para uso não nobre. O consumo das primeiras faturas
provou que as Calins praticavam um consumo sustentável e que isso advinha da
cultura Rhomani.
Apesar da percepção inicial, o acampamento recebeu
mais famílias. Mulheres Rhomanis, influenciadas pelas pioneiras e da mesma
família, vieram a ocupar o espaço, aumentando o consumo mensal. A Tarifa Social
Especial garante a taxa mínima para 15m3 , mas, os m3 adicionais são
tarifados com o preço praticado para as demais classes de clientes
residenciais. Existe ainda um aumento na tarifa a partir de faixas de consumo.
Em resumo, os valores mensais passaram a aumentar e
chegaram a um patamar insustentável nos meses de dezembro de 2018 e janeiro de
2019. As faturas foram sempre pagas com regularidade e nas datas de vencimento,
por parte das Calins. Entretanto, não conseguiram assumir os valores praticados
nos meses mencionados. A AMSK assumiu a quitação das faturas naqueles meses,
mas, informou que não poderia continuar assumindo esse compromisso nos meses
subseqüentes.
NOVO ENTENDIMENTO SOBRE MODELO TARIFÁRIO
A Companhia Águas de Joinville oferece aos clientes
a tarifação por “economias”. Cada construção com instalação hidro-sanitária
independente é considerada como uma “economia”. Dessa forma, para cada
“economia” é oferecida uma taxa mínima de consumo mensal. Esse recurso atende a
unidades consumidoras com duas ou mais construções em um mesmo lote, mas com
medição única, comum a todos, refletindo numa redução nos valores mensais
praticados nas faturas.
Observando o comportamento do acampamento das
Calins, surgiu a proposta de entendimento de “economia”, cada tenda no
acampamento. Isso por que, de fato, seriam construções independentes utilizando
água de um ponto comum, o que nos traz o mesmo entendimento. Isso nunca fora
praticado anteriormente e foi necessário o envolvimento da fiscalização e de
profissionais especializados no cadastramento. Em fiscalização ocorrida em 13
de fevereiro de 2019, foram identificadas 8 tendas, mas, delas, 4 apenas com
instalação hidro-sanitária. Com essas informações e com avaliação do
Atendimento Social, foi alterada a forma de faturamento das contas mensais
baseada nessa nova avaliação de classificação. O resultado foi a redução em
cerca de 80% no valor mensal das faturas.
O atendimento, pelas vias padrões, não se daria. Os
resultados positivos se deram mediante o esforço da equipe social da empresa de
saneamento, deixando clara a situação de “superação”, ou, uma quase
“contravenção” disfarçada. O “direito humano” ao saneamento não foi considerado
nos processos da empresa, mas, na sensibilidade da equipe com a constatação das
dificuldades daquelas mulheres. As faturas têm sido pagas desde então, nas
datas de seus vencimentos, apesar das dificuldades encontradas pelas Calins.
A questão do destino do esgoto doméstico ainda
merece atenção. Os Rhomani caracterizam-se pelo hábito de migração. O espaço é
ocupado e um banheiro rudimentar e coletivo, e montado com um buraco no chão,
onde os dejetos são depositados. Esse “banheiro” migra no terreno sempre que
chega ao esgotamento, sendo o espaço anterior coberto com terra e, em alguns
casos com cal, como forma de esterilização. As Calins de Joinville, entretanto,
não migram mais e já habitam o local há quase uma década, pelo fato de serem
mulheres e estabelecerem, assim, novas formas de sobrevivência, de acordo com
suas habilidades e limitações culturais. Em algum momento, o banheiro móvel
poderá esgotar os espaços disponíveis no terreno, o que as colocará em condição
da necessidade de uma forma definitiva de atendimento.
5.2
Regularização da Água e
Instalação da Rede de Esgoto na Comunidade Quilombola “Bêco do Caminho Curto”,
em Joinville/SC
Em 2016, a equipe de Atendimento Social da
Companhia Águas de Joinville (CAJ) iniciou atendimento à comunidade Quilombola
“Caminho Curto”. No local residem 23 famílias, a maior parte delas em condições
precárias e em vulnerabilidade social. O local onde se encontra essa comunidade
é o sub distrito de Pirabeiraba, na zona rural de Joinville. A população
encontrada, à época de nosso primeiro contato, era de 87 pessoas, sendo 38
delas composta por crianças de até 14 anos de idade. A comunidade se utilizava
de água por meios irregulares, distribuída em rede precária com grande
vazamento, sendo que a solução demandava a regularização por parte da CAJ e
colocação de nova rede interna de distribuição, além da questão da necessidade
de eliminação do esgoto que corria a céu aberto.
O programa de voluntariado da CAJ realizou trabalho
de educação ambiental e de convivência com as crianças, jovens e famílias,
proporcionando empoderamento e viabilizando a solução das questões de
saneamento. O projeto resultou na regularização do consumo de água para todas
as famílias e na redução do consumo médio por família em 36%. O movimento
voluntário permitiu ainda a correta destinação do esgoto na comunidade. Esta
realização foi fruto de parcerias com diversos atores voluntários que de fato
proporcionaram a comunidade mudanças e maior qualidade de vida.
O trabalho iniciou com a aproximação com a
comunidade e levantamento de expectativas, tendo sido apontada a questão do
saneamento como principal desejo, assim como a questão da empregabilidade e
geração de renda para as famílias. O grupo de voluntariado assumiu o
compromisso que solução, buscando parceiros patrocinadores para a construção de
rede interna de água, rede coletora de esgoto e instalação de fossa séptica
coletiva.
Em 2019 foram concluídos os trabalhos, solucionando
a questão do saneamento com a participação da empresa de saneamento,
voluntariado e parceiros tanto privados como da sociedade civil (ONGs) e poder
público.
Mais um exemplo em que, para a solução, foi
necessário ultrapassar os limites da empresa de saneamento e envolver outros
atores sociais.
7.
Ponto de ruptura
O modelo atual, no qual o poder público limita a
ação das empresas de saneamento à propriedade regular e privada, está em curso
de choque com a questão dos direitos humanos relacionados ao acesso universal.
Outra questão que se apresenta é o uso de áreas de
proteção ambiental, assim como regiões de riscos de desabamentos, inundações e
outros acidentes, como moradia por muitas famílias. Manter as famílias nesses
locais é fechar os olhos para a responsabilidade social por parte do governo.
Ocorre que o estado não tem sido capaz de evitar ocupações, assim como não é
bem sucedido na remoção dessas famílias, sendo uma das razões o déficit
habitacional para as classes sociais de menor renda.
As empresas de saneamento, apesar de recorrerem a
recursos como o corte e as multas, não conseguem evitar o uso de seus serviços
de água tratada, uma vez que acessam invariavelmente, através de meios
irregulares. Essa situação contribui com as perdas comerciais, além de permitir
a contaminação da rede por conta de acessos indevidos. As tarifas são oneradas
e a qualidade de água consumida pelas famílias nesses locais pode ser
comprometida. As ações de fiscalização, além de onerosas, não solucionam o
problema.
Em resumo, o estado não tem garantido a preservação
de espaços urbanos, não consegue, posteriormente, remover as famílias dentro de
prazos plausíveis e, incompetente, recorre às empresas de saneamento como forma
de coibir recursos que tragam sustentabilidade às famílias no local. As
violações de direitos humanos, nesses casos, extrapolam a questão do
saneamento, mas atingem a habitação, a saúde pública etc. Romper com esse
modelo não é tarefa fácil, mas, necessária. As possíveis soluções se
viabilizarão com a participação de mais de um setor da sociedade. O poder
público, através das secretarias de habitação, secretaria da saúde e do meio
ambiente, assim como as empresas de saneamento, precisam ajustar essa agenda de
forma conjunta.
Neste momento, muitos direitos humanos estão sendo
violados nas cidades, tanto no Brasil como em grande parte do mundo. O Saneamento
engrossa agora essa lista.
A crescente escassez de recursos naturais, com
conseqüente elevação dos custos dos serviços de saneamento, colocam a questão
do direito humano também em choque com o poder de compra por parte de parcela
da população.
Os pontos de tensão prenunciam uma nova era para o
setor de saneamento, no qual o modelo atual não consegue suportar, exigindo
mudanças conceituais e estruturais, além de tecnologias alternativas.
De um lado, podemos elencar as forças que atuam no
pensamento presente, como principais neste estudo:
·
a Defesa
da Propriedade Privada;
·
o
Pensamento Industrial, com prioridade de atendimento a áreas de grande
adensamento humano;
·
a
Elevação dos Custos dos Serviços.
De outro lado, em rota oposta, temos os novos
cenários que se impõem:
·
o Direito
Humano aos Serviços de Saneamento;
·
as
Pressões Sociais;
·
as
Comunidades Isoladas, Interstícios Urbanos e Moradores com Hábito de Rua;
·
a Saúde Pública
e o IDH(M)
O resultado desses movimentos contrários gera
tensões que somente uma mudança no pensamento e tecnologias em uso poderá
trazer o movimento desejado para um novo cenário para o saneamento nacional.
FIGURA 1 – TENSÕES NO CENÁRIO DO
SANEAMENTO
8.
Cenários futuros
Tecnologias para captação de água de chuva, do ar e
do solo já existem em aplicação e podem resolver a questão do abastecimento de
água de forma descentralizada, assim como a questão do esgoto pode contar com
técnicas já existentes e em prática para seu afastamento, coleta e tratamento.
Novas tecnologias podem surgir e, ao que parece, as
soluções tecnológicas tendem a trazer os serviços das grandes empresas para as
unidades familiares. A exemplo do que ocorre com a captação da água de chuva
nas residências, novos produtos podem tornar a água potável através de sistemas
domésticos.
O modelo industrial aos poucos vai se
descentralizando e as empresas terão que criar soluções personalizadas. Um bom
exemplo disso são as impressoras 3D, que indicam nova revolução na indústria.
O setor de saneamento não ficará fora desse
contexto: num futuro talvez não tão distante, as famílias poderão resolver suas
necessidades de saneamento com equipamentos domésticos. Exemplos já existem no
mundo. Nos Estados Unidos, através do eletromagnetismo, já se obtém melhorias
na captação de água pela umidade do ar[6].
9.
Conclusões
A urgência na recuperação do tempo perdido com
relação à universalização dos serviços de saneamento, assim como o
reconhecimento mundial do saneamento como direito humano pela ONU e pelo
Brasil, apontam para a necessidade de revisão e criação de novos paradigmas por
parte do governo e das empresas de saneamento.
Os impactos na saúde pública podem ser mitigados
com ações mais simples, com investimentos menores se forem consideradas
tecnologias que sejam aplicáveis de forma descentralizada e considerando as
possíveis etapas do processo de universalização.
A questão do esgoto doméstico é urgente quando os
dejetos correm a céu aberto, causando impacto direto na saúde das famílias. Uma
vez afastado o esgoto, essa situação é resolvida, sendo a etapa seguinte a
questão da contaminação do solo e dos rios, devendo essas serem tratadas na
sequencia. As soluções descentralizadas, como redes com pontos de coleta
menores, escoadas periodicamente para as estações de tratamento - ETEs já
existentes, através de caminhões ou outros expedientes, resolve a questão do
tratamento sem a necessidade de construção de novas ETEs.
A questão do uso das empresas de saneamento por
parte de secretarias de habitação e meio ambiente como forma de pressionar
populações a abandonarem áreas não autorizadas, que se mostram ineficientes e
onerosas para essas empresas, vão contra o atendimento de um direito humano
reconhecido pelo Brasil e pela ONU.
Lidar com essa questão com ações de garantia do
direito ao saneamento, ainda que com a parceria da sociedade civil ou de
empresas parceiras, poderá trazer alternativas de atendimento sem que isso
venha a reconhecer como legítima a fixação dessas famílias nesses espaços não
autorizados
A atuação ideal deve considerar o direito humano ao
saneamento, a saúde pública, a eliminação de perdas e de acessos irregulares
aos serviços, utilizando tecnologias já existentes e com um entendimento num
contexto holístico que a questão requer, reavaliando os projetos dentro dos
moldes tradicionais, que exigem grandes investimentos e muito tempo para
execução.
10.
Referências Bibliográficas
BARROS, Rodrigo. A HISTÓRIA DO SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL.
Disponível em: http://www.rodoinside.com.br/a-historia-do-saneamento-basico-no-brasil/ Acesso em: 09 de janeiro de 2020.
BRASIL. Lei nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007.
Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico. Brasília. 2007. Fonte:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm
acesso em 19/08/2014.
Camila Maria TREIN,
Catiane PELISSARI, Heike HOFFMANN, Christoph Julius PLATZER, Pablo Heleno
SEZERINO, TRATAMENTO DESCENTRALIZADO DE ESGOTOS DE
EMPREENDIMENTOS COMERCIAL E RESIDENCIAL EMPREGANDO A ECOTECNOLOGIA DOS WETLANDS
CONSTRUÍDOS Disponível em http://scholar.google.com.br/scholar_url?url=https%3A%2F%2Fwww.seer.ufrgs.br%2Fambienteconstruido%2Farticle%2Fview%2F53262&hl=pt-BR&sa=T&ct=res&cd=4&d=15661821080040076767&ei=ZqMcXpmFHpuNy9YP58-XSA&scisig=AAGBfm0M0q3V9ERo4YiXaEpwsZfuewctkA&nossl=1&ws=1444x775&at=Tratamento%20descentralizado%20de%20esgotos%20de%20empreendimentos%20comercial%20e%20residencial%20empregando%20a%20ecotecnologia%20dos%20wetlands%20constru%C3%ADdos , visitado em
13/01/2020
CORREIO BRASILIENSE. COM.BR - ELETROMAGNETISMO
MELHORA CAPTAÇÃO DE ÁGUA PELA COLETA DA UMIDADE DO AR,
correiobrasiliense.com.br , disponível em https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/tecnologia/2018/07/09/interna_tecnologia,693721/eletromagnetismo-melhora-captacao-de-agua-pela-coleta-da-umidade-do-ar.shtml
visitado em 13/01/2020
G1 – GLOBO.COM , Com 47,6% dos brasileiros sem coleta de
esgoto, meta de universalização até 2033 é 'impossível', diz especialista ,
disponível em https://g1.globo.com/natureza/desafio-natureza/noticia/2019/07/23/com-476percent-dos-brasileiros-sem-coleta-de-esgoto-meta-de-universalizacao-ate-2033-e-impossivel-diz-especialista.ghtml ,
visitado em 09/01/2020
PRISCILA
NEVES SILVA E LÉO HELLER – O Direito
Humano à Água e ao Esgotamento Sanitário como Instrumento para Promoção da
Saúde de Populações Vulneráveis – (p.3), disponível em http://www.scielo.br/pdf/csc/v21n6/1413-8123-csc-21-06-1861.pdf , visitado em 20/02/2019.
[3] SISTEMAS NATURAIS PARA O TRATAMENTO DESCENTRALIZADO
DE ESGOTOS NOS MUNICÍPIOS DA GRANDE FLORIANÓPOLIS/SC – FERRAMENTA PARA O DESENVOLVIMENTO
REGIONAL SUSTENTÁVEL - Pablo Heleno Sezerino : Eng. Sanitarista e Mestre
em Eng. Ambiental (UFSC). Doutorando em Eng. Ambiental (UFSC) -.
Bolsista CAPES – Doutorado Sandwiche na Universidade
Técnica de Munique (TUM), Alemanha
[4] Calon,
ou calé, é a maneira como são conhecidos e se autodenominam os rhomá da
península ibérica, a saber, Espanha e Portugal, embora também se possa
encontrá-los no sul da França (sobretudo na Camargue), no norte da África
(especialmente no Marrocos) e, mais modernamente, nas Américas. Calin é
utilizado para a mulher Rhomani – popularmente conhecidas como “ciganas”.
CAMINHOSCIGANOS.COM, disponível em https://caminhosciganos.com/calon/ visitado em 13/01/2020.
[5]
Ver em “A HISTÓRIA DO ÚNICO ACAMPAMENTO
CIGANO CHEFIADO POR MULHERES” -
Huffpostbrasil.com, disponível em
https://www.huffpostbrasil.com/2017/12/12/a-historia-do-unico-acampamento-cigano-chefiado-por-mulheres_a_23305257/
, visitado em 13/01/2020.
[6]
ELETROMAGNETISMO MELHORA CAPTAÇÃO DE ÁGUA PELA COLETA DA UMIDADE DO AR,
correiobrasiliense.com.br , disponível em https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/tecnologia/2018/07/09/interna_tecnologia,693721/eletromagnetismo-melhora-captacao-de-agua-pela-coleta-da-umidade-do-ar.shtml
visitado em 13/01/2020
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