Morte líquida

Água, quanta coisa se pode dizer desse elemento natural que nos compõe.
Talvez seja a água a prova fundamental da filosofia oriental sobre o equilíbrio. Sua ausência, assim como seu excesso, mata. Vivemos por razão dela, mas, também podemos morrer por conta de seu uso equivocado.
Assim como os demais elementos naturais, a água procura o movimento, transforma-se em estados de matéria diversificados em resposta às temperaturas as quais for submetida.
Do pó viemos, ao pó retornaremos: entre um e outro, a água nos sustenta e nos viabiliza.
Assim como os demais elementos naturais, é desrespeitada por nós, humanos.
Aprisionamos, sujamos, poluímos, usamos de forma irresponsável,  negamos a muitos enquanto nos fartamos quando temos acesso.
A semana passada começou de forma trágica para mim: encontrei nossa cadelinha “Mel” imersa nas águas da piscina, na casa onde moramos.
Encolhida no fundo da piscina, parecia dormir serena. Para minha dor e desespero, encontrei-me naquele momento em que nos damos conta da fatalidade do tempo, da incapacidade que temos em voltar e evitar o que se tornou inevitável.
Minha incapacidade, a consciência de nossa frágil existência. A caída da máscara de nossa arrogância em pensar que estamos no controle de tudo.
Tudo passa pela mente: tentar o impossível somente para confirmar sua impossibilidade. Tentar entender algo que já não mais se torna acessível. Culpar-se, inevitavelmente, pela situação.
A imagem foi forte, não sai de meus pensamentos.
A água represada, confinada numa piscina, aparentemente inerte, implacável em suas regras naturais, desconhecedora do perdão. Talvez, por ser um elemento com regras tão claras, com comportamentos tão exatos, esteja acima de nossa condição humana, na qual nos tornamos incapazes de sermos exatos.
Meu coração se liquefaz, se torna água e corre nas veias explodindo em choro sem fim.
Apesar de tudo vou trabalhar, empresa de saneamento básico, lidando com a água, tentando levá-la aonde não chega, tentando devolver àqueles que não conseguiram arcar com seus custos.
A água me sustentando, biológica e socialmente. Dependência total, submissão e reverência.
Sentimentos contraditórios.
Vida que segue, morte que espreita, água que corre, penetra, se esvai, num ciclo eterno.
Da Mel, recebi as cinzas numa urna pequena. 
Quem dera pudesse hidratar o pó e reaver a vida.


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