DOR – IDENTIDADE E AFETO
Penso , logo existo, é uma afirmação de um
intelectual que subestima as dores de dente. Sinto, logo existo, é uma verdade de alcance muito mais amplo e que
concerne a todo ser vivo. Meu eu não se distingue essencialmente do seu eu pelo
pensamento. Muitas pessoas, poucas ideias: pensamos todos mais ou menos a mesma
coisa, transmitindo, pedindo emprestado, roubando nossas ideias um do outro. Mas
se alguém pisa meu pé, só eu sinto a dor. O fundamento do eu não é o pensamento,
mas, o sofrimento, sentimento mais elementar de todos. No sofrimento, nem um
gato pode duvidar de seu eu único e não intercambiável. Quando o sofrimento é
muito agudo, o mundo desaparece e cada um de nós fica só consigo mesmo. O sofrimento
é a Grande Escola do egocentrismo. (KUNDERA Milan, 1990, “A Imortalidade”,
p.197).
O sofrimento nos identifica e,
através dele, buscamos nosso espaço no ideário social. O sofrimento parece
explicar tudo, atenua nossos erros, eleva nossas conquistas: não estamos nós
vivendo a era da “superação”? Superação
pressupõe enfrentamento a alguma adversidade. Quantos de nós encontramos
sentido na vida através de uma doença, de uma mutilação ou de uma deficiência. É
preciso mostrar o sofrimento para alcançar o olhar da sociedade? Quantos povos
tornam-se conhecidos após uma tragédia, ou quando migram por conta de guerras e
conflitos. Analisando o recente movimento migratório do Haiti para o Brasil,
não foi o sofrimento que esse povo viveu no terremoto devastador que os
credencia a serem aceitos e defendidos? Mas então, o ser humano, sem sofrimento,
perdeu a sua identidade, a sua importância?
Envergonhamo-nos em dizer que não
sofremos. Resta, então, dedicar-se ao sofrimento alheio, engajar-se na luta
pelos que sofrem – se não tenho sofrimento, vou à busca de quem sofre, para
resgatar a minha identidade, meu sentimento de utilidade e afeto.
Se me torno famoso, experimento
os benefícios do consumo e da fama, mas, se não me mostrar sensível a alguma
causa que venha a lidar com o sofrimento alheio, se não crio uma Fundação
assistencial, não me envolvo em algum projeto social, corro o risco de perder o
reconhecimento, o afeto.
O planeta e a natureza sofreram,
por anos, com a exploração humana sem que muitas civilizações se dessem conta
disso, até que os recursos começam a se exaurir, que animais começam a morrer, fenômenos
climáticos começam a causar tragédias. Surge, aí, o amor ao planeta e à
natureza, mas, foi preciso a dor como catalizadora desse sentimento.
Então a dor seria o passaporte
para o afeto? Seria ela a derradeira fórmula para que eu me torne humano?
O estudo realizado por Cynthia A.
Sarti, Antropóloga, Doutora em Antropologia Social pela USP, denominado “A DOR,
O INDIVÍDUO E A CULTURA”, traz a reflexão da dor como manifestação social e, a
forma pela qual é constituída, como parte da trama social instituída.
O lugar social
do sujeito qualifica a sua dor e determina a reação do outro em face da sua
dor. Nas distinções de classe social, o sofrimento e o sentimento da dor dos despossuídos
aparecem como “naturais”. Esta concepção é interiorizada, tornando difícil,
para os socialmente desfavorecidos, conceber, para si, a idéia de bem-estar,
suposto atributo da classe dominante. Esta auto-desvalorização, um dos mais
perversos efeitos da desigualdade social, expressa o que Pierre Bourdieu chamou
de “violência simbólica”, isto é, quando o dominado age e pensa contra si
próprio, internalizando como legítimos os mecanismos de sua dominação.6 Isto
pode ser evidenciado na cena observada em serviços públicos de saúde, dirigidos
à população socialmente desfavorecida, quando esta, ao se considerar bem
atendida, agradece, surpresa, a atenção recebida, como se ser bem tratada fosse
algo sempre inesperado. (SARTI Cyntia A., disponível em http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v10n1/02.pdf
, pesquisado em 24/11/2015)
A dor seria, então, uma
construção cultural, que define as formas de manifestação, diferentes em função
do posicionamento social de quem a manifesta. Segundo essa estudiosa, “sentir a
dor do outro” pode reforçar a condição dominador x dominado, estabelecendo os
papeis de estratificação social.
A relação entre os dois autores
mencionados tem lugar comum no quesito da manifestação da dor como o olhar
egocêntrico e culturalmente engajado, tendo causas e efeitos como elementos do
jogo social. A dor seria, ao mesmo tempo, um apelo ao afeto e o reforço das
estruturas sociais estabelecidas.
Será mesmo?
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