O que é a “Cultura Surda”?
“temos o direito de ser iguais sempre que a
diferença nos inferioriza, e o direito de ser diferentes sempre que a igualdade
nos descaracteriza.” Santos (1995)[1]
A resposta não é rápida,
muito menos simples.
O texto a seguir, extraído
de página virtual do Curso EAD de Graduação em Pedagogia-Licenciatura da UFRGS,
traz algumas definições:
Cultura
surda é o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e de modificá-lo a fim de se torná-lo acessível e habitável
ajustando-os com as suas percepções
visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas e das “almas” das comunidades
surdas. Isto significa que abrange a língua, as
idéias, as crenças, os costumes e os hábitos de povo surdo. Descreve a pesquisadora surda:
[...]
As identidades surdas são construídas dentro das representações possíveis
da cultura surda, elas moldam-se de acordo com maior ou menor
receptividade cultural assumida pelo sujeito. E dentro dessa receptividade cultural, também surge aquela luta política
ou consciência oposicional pela qual o individuo representa
a si mesmo, se defende da homogeneização, dos
aspectos que o tornam corpo menos habitável, da sensação de
invalidez, de inclusão entre os deficientes, de menos valia social.
(PERLIN, 2004, p. 77-78)
Fonte: STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre
a cultura surda. Florianópolis. Editora UFSC. 2008. (p.24)
O entendimento sobre o tema
requer uma construção de conceitos, baseados em pesquisa e vivências.
No texto citado, o termo “homogeneização”
nos dá a primeira “dica” sobre o universo da Cultura Surda e a Revista Virtual
de Cultura Surda e Diversidade – RVCSD, traz-nos reflexões que nos ajudam a compreender melhor esse
cenário.
SÍLVIA ANDREIS WITKOSKI, a
autora do artigo “PROBLEMATIZANDO A IDEOLOGIA ORALISTA”, publicada pela RVCSD, contextualiza
o tema no ambiente excludente de nossa sociedade, incluindo as instituições escolares
como lugares não “neutros”, ou seja, reprodutores dessa lógica.
Cita a autora:
O
domínio da ética liberal, centrada no lema de que sem competição não há progresso, implica uma perspectiva
individualizante e egocentrada da sociedade, que pressupõe a aceitação de que os naturalmente capazes serão os
vencedores, enquanto que os que
não alcançam sucesso em suas perspectivas são culpados por seu fracasso (CRUCES, 2005). Esta ótica que aponta
para uma aparente igualdade de oportunidades no
sistema de ensino, subtrai o princípio básico apontado por Bourdieu e Passeron (1964) de que o universo escolar não é
neutro, e sim autentica práticas escolares da classe
dominante, legitimando privilégios sociais e eliminando os deserdados.
Sendo a escola um dos
primeiros e mais importantes lugares de construção da sociabilidade, tem
assumido também a condição de reprodutora do “ideário de homogeneidade”,
promovendo a exclusão de crianças pela condição de “pobreza, raça, religião,
gênero e características distintivas individuais, sendo que o preconceito e a
discriminação “se expressam na forma de fracasso escolar” (ANACHE, 2005,
p.115).
Prosseguindo a leitura,
encontramos o trecho em que a autora, de forma muito apropriada descreve: "Encontrar formas de sociabilidade, que conjuguem as
relações entre diferença e igualdade,
se constitui em um processo complexo de mudança, para o qual o discurso de Santos (1995) parece apontar um
caminho quando afirma que: “temos o direito de ser
iguais sempre que a diferença nos inferioriza, e o direito de ser diferentes
sempre que a igualdade nos
descaracteriza.”
Acrescenta, então, que as
tentativas de desenvolvimento de uma proposta pedagógica “bilíngue”[2], apoiam-se em ações de “tolerância”,
“sem empreender qualquer ação no sentido de transformar as relações sociais,
culturais e institucionais” (Sá, 2002, p.358). Deste modo, nas grandes
narrativas sobre a surdez, prevalecem as representações sociais subordinadas ao
estereótipo da incapacidade e da deficiência do surdo.”
A hoje denominada “inclusão”,
no campo da educação não tem demonstrado eficiente, pois os surdos são levados
a concluir o ensino médio sem que tenham domínio de seus conteúdos
programáticos, imperando o preconceito sobre a suposta (indevidamente suposta)
incapacidade do surdo em aprender. São assim, levados à progressão baseada numa
condescendência, que se fundamenta na falsa prerrogativa da “caridade” para com
“incapazes” – efeito comprobatório da submissão imposta pelo modelo homogênico.
Prossegue o texto: “A
própria forma com a qual muitos ainda denominam os surdos como “surdos-mudos”
ou “mudinhos” explicita como predomina o preconceito em relação aos mesmos.
Tais denominações também revelam total ignorância sobre o que é surdez, uma vez
que os consideram naturalmente incapazes de aprender a falar através da
expressão oral, quando se sabe que, na verdade, a ausência da audição que
facilita a integração da criança ouvinte na comunidade ouvinte, tornando a
aprendizagem da expressão oral um processo de familiarização nas trocas sociais
naturais da criança, no caso da criança surda inexiste, e por isso a dificuldade
desta de aprender a falar. A sua percepção da fala se dá por meio visual, o que
necessariamente implica em um programa especializado para que possa aprender
(FERNANDES, 2005).”
Essa atitude homogênica classifica
o surdo como incapaz, deficiente, o que se configura numa visão distorcida e
não científica. Em síntese, são pessoas que não ouvem e que, para que se
relacionem com o mundo, com o conhecimento, para que possam exercer seu direito
à cidadania, utilizam-se uma Língua própria, que pode ser aprendida pelos
ouvintes. A ponte entre os dois mundos (dos surdos e dos ouvintes), já fora
construída.
Sobre essa língua, que no
Brasil é conhecida como a Língua
Brasileira de Sinais (LIBRAS), escreve a autora: “...é uma língua
visuo-gestual, com características e estrutura gramatical próprias, tão rica
quanto qualquer outra.” Não se trata,
portanto, de um amontoado de gestos ou mímicas, como os menos informados possam
vir a pensar sê-lo. As raízes históricas dessa
exclusão encontram-se, como já foi mencionado, na submissão dos surdos imposta
pela cultura que se quer homogênea.
Os conceitos formulados com interesses
ligados a grupos de poder, alimentam a abordagem científica voltada para a “cura”
da surdez. Dessa forma, o surdo é visto como “doente”, e , portanto, objeto de “tratamento”.
Nesse sentido, prossegue a
autora: “Por tal, este tem de ser “tratado”, a fim de aproximar-se do “normal”,
com uma série de procedimentos que vão desde o processo de medicalização da
surdez até a imposição da língua majoritária oral-auditiva, não reconhecendo a
Língua de Sinais, como o meio de comunicação legítimo dos surdos (FERNANDES,
2003).
No ano de 1880, ocorreu o
Congresso Internacional de Educadores de Surdos, na Itália, ficando conhecido
como o “Congresso de Milão”. Até então, algumas conquistas haviam sido
alcançadas, mas, liderados pelos ouvintes de maior influência no meio
científico na época, forçou-se a decisão de proibição do uso das línguas de
sinais, com o argumento da opção pela oralização como método de educação para
os surdos. Os surdos presentes não foram considerados, tendo sido excluídos da
votação que lhes traria um cenário futuro de grande desalento.
Relata o texto que “O
Congresso significou a luta entre especialistas pela produção simbólica, os
defensores da Língua de Sinais e os oralistas.” O conflito simbólico legitimou,
através da votação, a violência simbólica contra os surdos, mascarando o jogo
de poder, por meio do qual os oralistas detinham o capital econômico e
defendiam os interesses da classe dominante com tal força, que conseguiram
impedir os surdos de participar da votação, impondo instrumentos de
conhecimento e expressão arbitrários, como se correspondessem a interesses
universais, naturalizando-os.”
Estava abolida a Língua de
Sinais, assim como a Cultura Surda. O surdo pode falar, portanto, deve se manifestar
dessa forma. O fato do Surdo conseguir emitir sons e chegar a falar não muda a
sua condição de surdez: os sons que emite não são por ele ouvidos e atendem
apenas a uma conveniência social, mantendo o surdo excluído da sua própria
socialização.
Mas a história, como sempre,
mostra que não se extinguem manifestações legítimas por meio compulsório:
apenas adia-se seu reconhecimento. O texto revela: “Numa relação autoritária,
marcada por imensos abusos físicos e simbólicos, os surdos por muito tempo
foram proibidos de se comunicar através desta, levando-a à clandestinidade,
para numa atitude de resistência mantê-la viva às escondidas, em espaços
privados como os banheiros e os dormitórios das escolas para surdos .”
Mesmo com o uso “clandestino”
do direito de se comunicarem, os surdos viveriam um grande retrocesso, e, mesmo
no momento presente, tendo sido vencidas essas proibições, os efeitos ainda se
verificam. Na educação, segue a autora: “O descrédito social da Língua de
Sinais, que se estende também dentro de muitos espaços institucionais de
ensino, explica porque inúmeros professores de alunos surdos continuam no
exercício da docência sem ter a proficiência na mesma.”
O peso atribuído à língua
portuguesa é superior ao depositado na de Libras, sendo esta última considerada como
acessória, secundária. A escola a “tolera”. Os efeitos na auto-estima e nos
resultados alcançados pelos surdos são claramente prejudicados por essa visão
excludente.
A autora alerta: “É
importante lembrar que a atitude de tolerância implica uma ideia de
superioridade por parte de quem é tolerante (SILVA, 2007). ... A
incredibilidade em suas potencialidades, sustentada pela ideologia oralista,
explica porque os alunos surdos são “poupados dos conteúdos escolares mais
complexos, “empurrados” de uma série para outra” (STROBEL 2006, p.6), sem os
requisitos necessários exigidos de um ouvinte. O que sustenta este tipo de
prática, mesmo que não seja verbalizada, é a percepção de vê-lo como um sujeito
“retardado”, um coitado, que por piedade recebe uma “ajudinha” para ir passando
de ano.”
CONCLUSÕES
Os surdos fazem parte
daqueles que são considerados como “deficientes”, doentes e até mesmo
incapazes. A sociedade idealizada como “normal”, baseada em conceitos ligados a
interesses do poder instituído, já apostou na “cura” desses indivíduos,
investindo em ações voltadas às ciências médicas e terapêuticas.
Os estudos científicos com o
viés da anatomia, prova que os surdos podem falar e, portanto, devem ser
incentivados a fazê-lo, complementando a compreensão com a leitura labial e a
escrita.
Entretanto, a história tem
registrado a luta de surdos pelo direito de uso de sua própria Língua de
Sinais, que é a forma mais adequada e eficiente de eliminação da barreira
comunicacional. E essa barreira não se limita aos surdos, podendo ser
compartilhada pelo aprendizado dos ouvintes. Um mundo “bilíngue” seria, de
fato, o mundo ideal onde os surdos poderiam exercer seu direito a cidadania,
ainda negado por mecanismos subliminares de controle social.
A Cultura Surda envolve todo
um contexto comportamental, comunicacional e de fortalecimento dos surdos na
luta pela sua cidadania. Assim como, ao aprendermos um idioma estrangeiro,
precisamos entender mais sobre a sua cultura local, para não praticarmos uma
tradução literal e com sentidos equivocados, também com os surdos esse fator
ocorre, o que reforça a Libras como “Língua”, produto de uma cultura onde os
seus indivíduos diferem-se por um fator apenas: a forma de comunicação e
percepção do mundo que os cerca.
O respeito e o
reconhecimento dessa luta por parte da comunidade é de grande importância, e
somente o conhecimento nos leva à correta interpretação do contexto social em
que se inserem os surdos.
Fonte:
http://editora-arara-azul.com.br/novoeaa/revista/?p=400
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