Conto "Caroline", publicado pela Editora Edicon em 1994

Caroline

As tardes de outono têm segredos que somente o espírito elevado consegue desvendar.
Infelizmente, esse estado de inspiração não pode ser experimentado de maneira permanente e nem mesmo voluntária – são lampejos que ocorrem em momentos especiais.

Assim, naquela tarde de outono, Pedro havia caminhado uns cinco quilômetros, mas não se sentia cansado, pois captara cada manifestação em seu percurso.
Viu as folhas caindo no solo, quase que podia ouvi-las.
Um gato cruzara o seu caminho – era um filhote.
Carregou-o até à casa de Caroline, que o aguardava à porta com um brilho especial nos olhos que, como tudo o mais, somente Pedro conseguia perceber.

- Veja como é frágil – acho que se perdeu da mãe.

Caroline olhou para o animalzinho com uma ternura infantil.
Morena, cabelos lisos e compridos, desalinhados sobre os ombros, era uma menina no corpo de mulher, em seus quatorze anos.
Abraços, beijos.
Correram ao jardim interno.
De passagem, um “olá” para Dona Márcia, mãe de Caroline, que apreciava o Pedro como a um filho que não tivera.
O velho sofá novamente servia para abraços e beijos calorosos, como faziam desde que se conheceram no colégio, há seis meses atrás.
Um desejo ardente e febril de entrega mútua, sufocado pela presença de Dona Márcia que, apesar de distante, fazia-se sentir com uma autoridade subjetiva, intuitiva.
Um disco na vitrola completava o clima.
Ali sentados, abraçados e em silêncio, viajavam nos acordes musicais e aprendiam mais sobre si mesmos.
Experimentavam uma sensação indescritível, uma força que crescia e que fazia com que tudo o mais se tornasse efêmero.
Após um período de silêncio, Caroline olhou para Pedro com um olhar diferente, apreensivo.

- Há algo que não contei ainda a ninguém, mas quero que saiba...

Pedro dirigiu-lhe um olhar que demonstrava um misto de curiosidade e aprovação.

- É sobre alguém...à noite, não acontece em todas as noites...mas às vezes...

Silenciou meio confusa.

- Não sei se devo...

- Não tenha medo de me contar nada, Caroline – reforçou Pedro.

- Há alguém que aparece à beira de minha cama. Não é real. Talvez seja minha imaginação.
Um homem de uns quarenta e poucos anos...ah, deixa pra lá...

- Não diga isto, eu acredito em você.

Com 17 anos, Pedro estava aberto para todo o tipo de experiência.
Na verdade, ele mesmo não havia encontrado explicações plausíveis para certos acontecimentos em sua vida.

Caroline suspirou fundo.

- Ele me dá conselhos. No início, só me observava. Com o tempo, passou a falar comigo. Quando estou triste, procura me consolar. Tem o olhar paternal e parece ter resposta para tudo. É um amigo, um companheiro. Conversa comigo e, de repente se despede, desaparecendo no ar. Logo em seguida, me vem um sono profundo. Parece pressentir meu sono.

Enquanto Caroline descrevia seus encontros paranormais com aquele homem misterioso, Pedro, tomado por uma intuição qualquer, tomou de um bloco de rascunhos e desenhou uma face masculina.
Ao terminar, estendeu-a a Caroline, que arregalou seus olhos numa expressão de assombro.

- É ele! Você acaba de desenhá-lo, como conseguiu?

Pedro não soube explicar: - Apenas uma intuição.

Dona Márcia trouxe uma garrafa de licor de piqui, um dos preferidos de Caroline.

Um tempo depois, Caroline teve que se mudar. Seu pai, engenheiro de uma multinacional, foi convidado para trabalhar na França – uma oportunidade irrecusável.
Pedro chorou a perda de Caroline, como se parte de sua vida o tivesse deixado.
A dor era tão forte que sentiu-se como uma casca, totalmente vazio por dentro.
A tristeza deu lugar a um ódio alucinado.
Amaldiçoou ter nascido.
Ao vê-la partir, desejou sua morte.
Quisera tê-la matado a aprisionado sua alma na garrafa de um de seus licores preferidos para que, no seu leito de morte a libertasse, e juntos vagassem como dois fantasmas pela eternidade.
Na despedida, jurou a Caroline que se encontrariam novamente, promessa que jamais poderia cumprir, uma vez que sua débil situação financeira não o permitiria.
Caroline por certo, em muito pouco tempo encontraria alguém, pois era bela e jovem demais para ficar sozinha.
Mas, do primeiro amor nunca se esquece.
Assim foi com Pedro – um misto de tristeza e frustração.
Os anos se passaram insípidos, vazios.
Envolveu-se com outras mulheres, mas seu coração estava marcado com uma lesão irreversível.
Passava longos espaços de tempo mergulhado em seu trabalho, com uma dedicação que o impedia de pensar em qualquer outra coisa.
Tornou-se próspero. Casou-se, teve filhos.
Chegou aos quarenta anos, idade em que os homens começam a perceber que a vida é finita e que há pouco tempo para realizar os desejos mais secretos da alma.
Com quarenta e dois anos adoeceu, acometido por uma meningite que o colocou na cama com febres altíssimas.
Perdeu a consciência.
Em seus delírios, encontrou Caroline.
Em seu quarto, meiga, doce.
Caroline, a mesma Caroline adolescente – não havia sofrido como ele a ação do tempo.
Conseguia visitá-la em seu quarto. Não podia tocá-la, mas conseguiam conversar.
Os mesmos olhos castanhos, os cabelos lisos espalhados pelos ombros.
O tempo se dividia entre longos períodos de inconsciência e visitas ao quarto de Caroline.
Ela parecia assustada com sua presença, mas logo se tornara mais confiante, confiando-lhe seus segredos, suas dúvidas, anseios.
Com ternura, dava-lhe conselhos.
Sentia aquele amor latente, que havia estado adormecido em seu coração por tanto tempo, agora desperto, revigorado.
Seu estado, porém, se agravava a cada dia.
A febre cedia por algumas horas durante o dia, mas voltava a acometê-lo à noite, levando-o a novos momentos de inconsciência e delírios.
Nos últimos momentos de vida, em seu último delírio, encontrou Caroline em seu quarto, chorando copiosamente.
Abatida, contou que precisaria partir, mas não saberia como enfrentar a perda de seu namorado.
Sabia que ele não aceitaria.
Contou que havia lhe falado dos encontros noturnos com ele e que, sem saber como, conseguira desenhá-lo.
Estendeu o desenho para que Pedro o visse.
Assustado, lembrou-se do desenho que fizera e então percebeu sua própria face.
Havia intuído sua imagem com quarenta e dois anos.
Emocionado, dirigiu-se a Caroline com todo o seu amor.

- Caroline, Caroline... que poderia lhe dizer?

O amor é uma energia, algo que move o universo, que consegue preverter a ordem sem, no entanto, deixar de ser natural.
Uma vez experimentado, jamais poderá ser esquecido.
Toda uma vida pode ser desprezada por alguns momentos nesse êxtase, no qual tudo conspira a favor em nossos corações.
Não há barreiras, nem impossibilidades.
Porque o espírito vaga por onde quer, no tempo em que desejar.
Pedro jamais a deixará.
A última folha caída marcou o fim de uma vida angustiada, mas também o início de uma viagem desconhecida para Pedro, naquela tarde de outono.

Comments

Unknown said…
Que lindo
Unknown said…
Que lindo

Popular posts from this blog

GUERRA À ESTUPIDEZ

A PRAIA

PEDRAS NAS PORTAS