O "EU" ESQUECIDO

Hoje fiz algo que há tempos desejava, mas, não encontrava tempo: procurei meu "eu" esquecido. Talvez um tempo que postergava por fugir de mim, de minhas entranhas. Entranhas estranhas, que escondem um "eu" que tento conhecer, mas, tenho medo.

Sei como encontrar esse "eu": basta uma música. Não qualquer música, é claro, mas "aquela" música que cataliza essa viagem. Cada um tem a sua e o leitor decerto sabe encontrá-la.

A música tema de um momento, de um ou mais encontros, ou de desencontros.

Pode ser outra coisa, uma música sem relação com minha história, mas que, pela beleza e sensibilidade, toca as cordas de minha alma, tal qual um músico experiente dedilha uma harpa empoeirada, esquecida no sótão de uma casa abandonada pelo tempo.

Quando encontro meu "eu", fico confuso e infantil. Choro. Me lembro de quando pensava ter em mim uma capacidade de amar incompreendida, imensa, que ardia em meu peito.

Imaginava poder encontrar essa força e, assim, poder externá-la em toda a sua potência, através de um relacionamento, de uma pessoa amada, de uma paixão.

De fato, isso foi possível em alguns momentos, mas, apesar de transbordar toda essa energia, não encontrei reconhecimento. Não o reconhecimento que me traria importância, que me acariciaria o ego, mas o reconhecimento dessa força, dessa potência. Me senti, nesses momentos, como se estivesse numa festa de passagem de ano, fazendo explodir um rojão nos céus, sonoro, vibrante e colorido, mas, perdido entre outros tantos e tornando-se imperceptível.

Potência desperdiçada? Talvez.

Essa força, esse "eu", minha essência, que tanto se tentou apagar, esconder, embaçar, confundir e diminuir, ridicularizar, não morre.

Às vezes ele grita, chora, esperneia. Nesses momentos, assim como se limpa um vidro embaçado, removo minhas fantasias, minhas máscaras, me desnudo e me encontro, tal qual como era em essência e como desejava nunca deixar de ser: um menino emocionado com um luar belo, sentindo-se só nesse momento, sentindo-se parte de um todo esplendoroso.

Há algum tempo, a cerca de uns dois anos, estive com meu pai. Ele já no fim da vida, sentou-se num banco no jardim na frente de sua casa, silencioso, a olhar para algo que eu não via.

Foram minutos de silêncio compartilhado, ele já não falava como antes, passava o dia em silêncio.

Demorou para perceber, ou aceitar, que o fim chegava.

Chegava a fazer planos, como comprar um novo automóvel.

Mas as evidências lhe convenceram do destino implacável. Então se silenciou.

Mas, voltando ao banco, após um longo tempo de silêncio, ele olhou para mim e perguntou: "o que você pensa de mim meu filho, nessas condições em que me encontro?"

Descobri que sentia-se constrangido por estar frágil, por estar no fim, por talvez sentir-se menor.

Vi nele o encontro com seu "eu" e me encontrei com ele naquele momento.

Meu "eu" e o "eu" dele se olharam.

Enchi-me de amor, fiz brilhar minha luz, transpus o embaçamento e descobri o meu "eu", que ganhou força e falou.

Pude dizer ao meu pai uma frase curta mas profunda e que estava presa em minha alma: "como eu te vejo meu pai? Com muito orgulho do senhor".

A conversa cessou assim, voltamos ao silêncio. Encobrimos nossos "eus". Foi a última conversa que tive com meu pai.

Meu "eu" se sentiu pleno, naquele momento, e tornou ao seu esconderijo.



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