CAMINHO CURTO: A ILHA DE DESILUSÃO EM MEIO AO PARAÍSO....




21 de março de 2016. Joinville, Santa Catarina, subdistrito de Pirabeiraba. 

A estrada que nos leva, eu, a assistente social e o fiscal de campo, passa em meio a uma região rural, uma paisagem europeia.

A estrada é boa, asfaltada, muito embora não existam outros veículos, senão o nosso, a percorrer o caminho. A questão imediata e inevitável que nos vem à mente: qual seria a razão de tal investimento para tão pouco uso, quando existem locais de grande fluxo de veículos na cidade em que as ruas ainda são de paralelepípedo e, deteriorados pela falta de manutenção, tornam o caminho perigoso e cheio de buracos, ondulações e outras armadilhas.

Talvez a razão para o investimento aqui seja a existência de propriedades rurais de alto valor econômico, ainda que distantes entre si, mediadas por interstícios amplos e repletos de vida natural em toda a sua exuberância, um recato de mundo que povoa a imaginação paradisíaca dos sonhadores.

Entretanto, nossa missão é de atendimento social e, ainda que possa parecer improvável, encontramos uma comunidade pequena, composta por 28 famílias, em casas rudimentares, muitas delas em madeira comprometida pelo tempo e por maus cuidados.

Como uma ilha isolada em meio a uma paisagem rural de tirar o fôlego, essas famílias se agrupam, se amontoam em casas construídas sem nenhuma coerência espacial, obrigando, muitas vezes, a adentrarmos no quintal de uma para chegar à casa do vizinho.





Nossa presença é rapidamente notada e, aos poucos, somos cercados por alguns moradores, curiosos em saber sobre o que pretendem esses forasteiros da empresa de saneamento.

Em nossos registros, existe o histórico de que houve ligação de água para 13 famílias num passado, mas, apenas três dessas mantém-se ativas, estando as demais cortadas por falta de pagamento.

As razões parecem ter sido o crescimento do número de famílias e as diferentes interpretações da empresa de saneamento sobre a legalidade das ligações, permitindo, num primeiro momento, a ligação de água para as primeiras famílias, para, mais tarde, negar para as famílias que chegaram depois.

As pessoas que nos cercam desejam novas ligações de água, mas, alegam não terem documentos que lhes confiram a posse dos lotes. Uma senhora, primeira moradora, explica-nos que todos pertencem à mesma família, filhos, netos, bisnetos. Apesar de todos pertencerem à mesma família, não existe cooperação: “aqui ninguém se ajuda”, diz a senhora.

Com ela um jovem, que ela diz ser seu neto, achega-se contorcendo-se em dores, silencioso, mas visivelmente afetado por alguma dor na região dos rins, curvando-se e olhando, de forma resignada, para a senhora sua avó. Parece um tanto afetado por algum medicamento ou talvez por alguma doença mental. A senhora inicia um choro, reportando o sofrimento que lhe coube em arcar com a criação do neto. Teria levado-o ao posto de saúde, mas, medicado, foi liberado na sequencia.

Olho para as pessoas no local. Um morador, sentado em uma cadeira, nos cumprimenta com um aceno de mão, o olhar distante, sorriso tímido, um comportamento que demonstra problemas mentais.

As casas são mediadas por lixo, descartado de forma displicente e formando obstáculos para a corrida das crianças que, descalças, desviam de montes e pisam no chão que, em certos pontos, encontra-se molhado por conta de esgoto ao céu aberto.

Um senhor me diz que já foi melhor viver ali, mas, temem o que chama de “mosquito do capeta”, numa alusão ao risco de doenças transmissíveis pelo aedes egypit: “antes, a gente comia as arface que eram plantadas sem veneno, mas, hoje, põem veneno nas plantas e, então, o mosquito, que come as arface, picam a gente e trazem as doenças”.

Mas, voltando à água, existem apenas três ligações de água ativas e 28 famílias vivendo delas. O consumo não condiz com esse volume de usuários, o que demonstra o uso da água por meios clandestinos.

Em meio a todo esse caos, animais caminham pacificamente. São cães, gatos, galinhas, gansos. Os cães, alguns deles magros e sarnentos, pois que dependem das famílias que lutam para terem o que comer, não sobrando restos suficientes para alimentá-los. As galinhas, mais independentes, parecem saudáveis, ciscando o chão junto com os gansos, que cruzam as cercas e visitam o terreno ao lado, um enorme campo com pastos e gados avistados à distância.

Esse ponto é importante: tanto de um lado, quanto do outro, nos dois extremos do povoado, e no limite de seu término, existe um paraíso campestre, uma paisagem de paz e serenidade e de uma beleza estonteante.
Nesse pequeno povoado, onde a felicidade parece ter se esquecido de visitar, as pessoas estão confinadas num espaço exótico e contrastante com a grandeza da região.



Me pergunto: o que será que saiu errado? Afinal são seres humanos, com eras de evolução, cérebros desenvolvidos, consciência e poder de escolha de seus destinos, mas, infelizes, doentes e degradados.
Os animais parecem ter tido maior sucesso, sem esse desenvolvimento evolutivo, sem o que chamamos de consciência, passeiam pelo lugar saudáveis, criam seus filhotes e se desenvolvem com serenidade. 

Ao sair, passo por um arbusto florido e percebo movimento incomum. Ao observar melhor, vejo inúmeras borboletas visitando as flores, num espetáculo de cor em suas asas que se movem abrindo e fechando. Chamo à atenção da assistente social, que não havia percebido e sairia do lugar sem perceber esse “show”. Um momento mágico, uma demonstração a mais da beleza natural em contraste com o caos urbano criado por aquelas famílias desfortunadas. Num gran finale, as borboletas alçam vôo, enchendo o ambiente de cores e encantos.

Saio com perguntas sem respostas: onde erramos? Seria a consciência uma conquista às custas de preços muitas vezes impagáveis? Porque as galinhas não sofrem abandono, desamor, fome e miséria, enquanto humanos sofrem tantos tormentos gerados pelos enganos eternos culturais que excluem crianças, idosos e incapazes. 

Porque as borboletas conseguem alimento enquanto embelezam o universo, enquanto homens e mulheres são abandonados a viverem como subespécies, em condições degradantes, ainda que em meio a um cenário paradisíaco?

Se hoje nos fosse permitido viver no paraíso cristão, teríamos a mesma sorte? Seriamos incoerentes e injustos ao ponto de manter, até mesmo no paraíso, famílias em situação degradante?
Onde foram colocados os limites entre essa comunidade e o universo perfeito à sua volta? O que os tornou presos nessa ilha? 

São paredes invisíveis, barreiras culturais, virtuais, espaços definidos culturalmente por uma sociedade estranha, que não parece considerar as leis naturais, visto que atenta contra sua própria espécie, envergonhando os corações sensíveis.

Estranho o nosso comportamento humano.
Talvez essa seja a explicação de sermos tão pequenos diante do universo e de estarmos tão distantes do conhecimento do seu funcionamento, suas origens e destinos.



A volta foi dolorosa, o sentimento de inutilidade, de responsabilidade além de nossas competências e forças, e a culpa de não ter podido fazer algo, causar alguma mudança positiva para aquelas famílias, imersas numa Matrix, num universo paralelo, cegos para toda a beleza e resplendor natural que as cerca.

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